Tuesday, November 22, 2005

Os loucos 4 (Loucos de rua)

Estava dando uma aula sobre movimento antimanicomial e diante do tema da tentativa de maior integração do doente na sociedade, não tive como não lembrar desses loucos que estão nas ruas. Não os que estão sem assistência, mas aqueles que, meio ao modo medieval, marcam presença em locais estratégicos da cidade. Seja em uma esquina movimentada ou mesmo perto de nossa casa. Talvez aquele vizinho doidão ou morador do bairro que chamava a atenção por sua excentricidade ou comportamentos mais bizarros.

Segundo as palavras de Lobosque (1997, p. 23), “‘fazer caber’ o louco na cultura é também ao mesmo tempo convidar a cultura a conviver com certa falta de cabimento, reinventando ela também seus limites”. Ou seja, a luta é por uma maior tolerância para as diferenças, mesmo que elas sejam meio espantosas, estranhas e talvez bizarras. Para que o louco não seja excluído, isolado, exterminado, deveríamos recuperar um certo espírito medieval em que os loucos estavam mais integrados à vida social.

Esse negócio de isolar louco só veio mesmo a ocorrer com vigor a partir da modernidade. Pois os loucos passaram a ser concebidos como uma ameaça a três valores que são os pilares do mundo moderno: razão, liberdade e individualidade. Além de ter rompido com a ordem das coisas, da razão, também têm sua individualidade devassada pela confusão de si com o mundo e pela fragmentação do seu eu, a alienação de si mesmo. E assim também não é possível, segundo a concepção filosófica antiga, escolher, ser livre. Mas não quero ficar aqui me delongando em explicações. Quero falar dos loucos que vi nesta vida e que percebi como mais integrados. Não importa de que forma.

São os loucos de rua. Um que batia bola numa esquina, em frente ao Sesc, em Ribeirão Preto. Aliás, pra mim é muito simbólico que ele ficasse exatamente no semáforo de frente ao Sesc. Pois esta instituição me traz sempre muito boas lembranças em relação a artes, esportes, convivência com as diferenças, humanização da vida. Era o louquinho do Sesc ou do posto Maravilha. Um posto de frente ao Sesc. Na verdade ele estava mais pra Maravilha do que pra Sesc.

E aquilo era uma maravilha. Ele passava ali seus finais de tarde, dando embaixadinhas com uma bola de futebol oficial e camisa de times. Adorava cortejar um ônibus inteiro parado no sinal. Controlando a bola, acenando pra galera, recebendo diariamente inúmeros aplausos. Aquilo era de uma alegria contagiante. Para outros poderia ser visto como algo triste, digno de dó. Mas eu e meus irmãos nunca vimos a coisa assim. A gente gostava. E ele gostava muito daquilo. Era seu espetáculo, seu show diário. Não estava mendigando, não parecia padecer de nenhuma miséria. Gente, convenhamos: bola oficial e camisa de times.

“Olha lá, Dri. O louco do futebol...”, dizia Cako ou Edu.

“O que será que se passa na cabeça de um sujeito desses?”, perguntávamos a nós mesmos, os três, juntos.

Um amigo meu fez tratamento em hospital-dia por um bom tempo. Sofria de alcoolismo e alguns agravantes. Sempre fora meio louquinho. Bebendo, a coisa ficava mais intensa. Não vou dizer quem é. Não pretendo expô-lo. E se eu pedisse a ele para publicar aqui sua identidade, ele deixaria. O cara é louco. Está pouco se lixando.

Um dia ele disse ao psiquiatra que tinha vontade de parar numa esquina movimentada e fazer discursos.

“Faça seus discursos. Por que não? Tá com medo do que os outros vão pensar?”, sugeriu o psiquiatra, que também não batia muito bem das idéias.

E não é que ele fazia mesmo. E não ficou marcado como o louco da esquina não. É necessária maior disciplina e assiduidade para tal. Como fez somente algumas vezes, não ficou para a história. Sabe aquela coisa de louco da hora, louco que se recupera? É visto como aquele sujeito excêntrico que deu ou ainda dá, de vez em quando, umas surtadas, sabe.

E esses loucos de rua podem também ter outro nome, mais carinhoso: “maluco beleza”, que virou até tema da música do Rauzito. Porque existe o maluco-beleza e o maluco-malvadeza. O primeiro é sangue bom, alto astral, alegria pura. O segundo é chato, doente, malévolo. Desses eu fujo. Mas também tem aqueles pseudomalvadeza, ou malvadeza sem risco. Melhor dizendo, tem louco que morde e louco que não morde. Louco de cidade do interior, que vive na rua, geralmente não morde. É igual vira-lata. Agora aquele que vive trancado, que se isola, que não convive, estes me parecem mais perigosos.

E por falar em pseudomalvadeza, e o seu Gino, hein? Ah, esse foi o louco mais famoso do meu bairro, na infância e adolescência. E tive o grande privilégio de morar na mesma rua, de frente à casa do sujeito.

“Meia, meia, meia! Eu sou o demônio!”, dizia bem alto, em tom enérgico e olhar diabólico, dentro do ônibus lotado, nos fundos.

As pessoas se assustavam e se afastavam, deixando seus lugares vazios. Gino sentava-se e dizia, dando gargalhadas diabólicas:

“Como é bom ser o diabo! Como é bom poder sentar onde eu quiser! Ah hahahahahaha...”, e ria-se, demoradamente, como num filme de terror. Eu e meu irmão ríamos juntos. Seu Gino era nosso chapa.

Mas a gente também brigava muito com ele. A molecada gostava de infernizá-lo. Eram brigas infinitas, verdadeiras guerras, com várias batalhas. Ele fatiava a bola que caia na sua casa, literalmente. Não somente rasgava ou furava, fazia churrasquinho mesmo. O cara botava fogo, cortava em pedaços. Louco, louco. E a molecada revidava. Punham bomba na sua caixa de correio e coisas semelhantes. Mas o que mais gostavam era de infernizá-lo com gozações, dançando e cantando em sua frente, correndo dele.

“Gineta campestre!!”, rebolando, em paródia à música do comercial do refresco Ki-suco campestre.

E seu Gino pegava pedaço de pau, atirando-o na molecada. Um dia agarrou meu irmão pelo shorts, que o bichinho quase se borrou todo, mas conseguiu fugir, com as calças meio arriadas. Ichi, meu irmão não era brincadeira. Capeta. Em plena festa junina pegou o microfone e começou a mexer com seu Gino. Minha mãe ficou uma arara.

Mas seu eu fosse aqui contar todas as peripécias do convívio com este nosso vizinho, precisaria de mais e mais parágrafos... Deixemos para as próximas estórias. Se o leitor quiser...

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* Lobosque, A. M. (1997). Princípios para uma clínica antimanicomial. São Paulo. Hucitec.


5 comments:

Anonymous said...

Claro, poste (rarará!, que o Saramago não me leia!)sim sobre o seu Gino. Você me fez lembrar dos loucos que passaram nos meus caminhos. Um muito capcioso que entrava nos ônibus na rua Cardoso de Almeida e dava um baita show. Um dia o encontrei bagunçando na piscina do Pacaembu... Uma menina de uns 30 anos que no começo dos 80 andava pela Paulista com um maço de cartas na mão e queria ler a sorte de todo mundo, um que ficava no farol da Paulista com a Augusta olhando o trânsito, outro maluco-beleza (mesmo!) que no final dos anos 70 frequentava os meios jovens (devia ter uns 30 tbem) e era meio histérico, gostava de criar polêmica. E uma que anda pela Vila Madalena (essa é atual), uma senhora, se veste relativamente bem, limpa, cheia de sacolas, longos cabelos brancos, pede cigarro nos bares e cai fora sem abrir a boca, ríspida. Dizem que ela é de uma família bem e nos anos 60 foi cineasta!

Mina

nadja soares said...

gente, quanto doido!!!!
quero saber de todas as historias!!!!
já!

adriano, vc é ótimo, eu tbém vi o louco do futebol... ficava fascinanda com a coreografia e os uniformes...

beijo

Uli Meyer said...

Hi there! Thank you for leaving a comment. I will make sure Cako reads it. I feel very blessed to have met Cako and have worked with him for a short while. It is rare to find a man who is so in love with the work he is doing, Cako is such a great talent that needs to get somewhere and we all know how hard this is. But I believe with his dedication it will happen! His friends and family should be very proud of him, he's a talented man (even though he's a bit cookie). Beijos for all you Brazilians.

Anonymous said...

Espetacular!
Esplêndido!

Lucinda Prado said...

Olá Adriano!!
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