Saturday, July 16, 2005

Os loucos 3 (A louca do pão)

Os churrascos e chopadas da época de faculdade eram muitas vezes inesquecíveis. Fabulosa é a capacidade que o ser humano tem para superar seus limites. E estes existiam até o momento das festas. Adorava assistir e participar do espetáculo que de fato deve corresponder ao sentido de uma festa: alterações de consciência, alegria e impulsos fluindo mais livremente. E nossa amiga Ilza não escapou desses três quesitos fundamentais.

Quando me aproximei, percebi que Ilza e minha namorada riam convulsivamente, de olhos esbugalhados e já roxas com a falta de ar e dores no abdômen. Era uma risada louca, das duas, de quem já perdeu boa parte do controle sobre si mesmo. Apesar de aparentarem intensa alegria e gozo, tinham uma expressão mórbida de loucas.

Mas Ilza queria ir além, como quem vai adentrar o mar e confiando que o domina. Esse oceano que é nosso psiquismo e um barquinho de substâncias psicoativas a navegar em suas tempestades. Com aventura e espírito desbravador (às vezes suicida), assim concebe a maioria das pessoas que usam drogas para viajar por entre as bordas da realidade.

Falava muito alto e proferiu vários discursos. Alguns muito engraçados e talvez memoráveis. Era muito mico, muita coragem e espírito embebido em álcool e maconha para uma pessoa só. Sua personalidade parecia ali estar pelo avesso. E ela sabia o quanto isso era espetacular e perigoso. Mas quem conhece perigo no infinito extremo da alegria, a qual já fez a curva para adiante do que não mais podemos conceber?

Ilza foi subindo, subindo e de tão alto, como um balão, explodiu suavemente e pulverizou-se no ar. Continuo bebendo e fumando, cada vez mais. Estava voraz em saber o que poderia haver adiante, como lugares ainda não visitados por seu espírito, em sua busca desbravadora incessante. E por fim adentrou um ponto tão demente de sua ebriedade onde as palavras não tinham mais função, pois sua boca (babando) e sua mente já não eram capazes de articular mais nada.

Durante todo o tempo de sua loucura segurou firmemente nas mãos um pedaço de pão com lingüiça. Caiu no chão várias vezes. O pão raspava no chão, mas ela não o soltava, mesmo com as sugestões insistentes dos amigos para o fato de aquele pão já era. Estava sujo, molhado, babado. Porém ela continuava a segurá-lo e de vez em quando ainda o levava à boca. Se apegou àquele pedaço de pão, como se fosse seu único referencial de uma realidade concreta. Os punho fechado, segurando o pão podre, como se segurasse seu último quinhão de realidade.

Com a outra mão às vezes pegava outro pão e enfiava um pedaço imenso na boca. Mastigava-o por um bom tempo, como se fosse um chiclete, e não engolia. E ainda insistia em conversar com a boca cheia daquela massa de pão com saliva.

A festa acabou e Ilza jazia completamente torta e largada, ao relento, em um banco da pracinha da faculdade, ainda com o pão firme na mão. Alguns rapazes se riam a observá-la. Comentavam e faziam inúmeras piadas. Um deles, bem gordo e com uma aparência repugnante, de sujo, tirou o pênis para fora da calça e o passou em sua boca. Riram bastante e foram embora.

Mas não teve jeito, na segunda-feira o assunto principal era o fenômeno Ilza, a descabelada louca do pão. E esse foi uma espécie de apelido com o qual teve de conviver por algum tempo; além das lendas referidas ao episódio.

O tempo passou e sua história ficou conhecida como a da louca do pão. Diziam que ela tinha enlouquecido durante uma festa e não largou jamais um pedaço de pão, o qual levava por vezes à boca, já podre. Teria permanecido vagando pelas redondezas do campus, proferindo e profetizando sandices, sempre com o pão com lingüiça podre na mão, alimento de suas qualidades clarividentes. Uma santa louca, descabelada e de pão podre na mão.

Um quadro com sua imagem sacra e imaculada foi pendurado dentro do centro acadêmico. Assim, as festas e loucuras ali se passavam não sem inúmeros pedidos de proteção e reverências à santa louca do pão.

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