Pouco vi alguém tentando decifrar um animal como uma galinha. Lembro, contudo, de um conto de Clarice Lispector. Ela narra o drama da fuga de uma galinha que estava prestes a ir para o forno. Ela vai parar em cima dos telhados das casas, como se soubesse da morte iminente. E o que mais me chamou atenção na narrativa de Clarice foi a sua bela suscinta descrição dos dois estados básicos de espírito de uma galinha: “apatia e sobressalto”. Magnífico, não preciso dizer mais nada. Ferreira Gullar também tem uma poesia sobre o galo. Muito bonita. Ele também tentou entender um pouco mais acerca do que é um galo. Claro, é totalmente imponderável tentar decifrar o que sente ou deixa de sentir um galo ou um galinha. Mas é por isto mesmo que é fascinante: o grande abismo que há entre nossas espécies.
Ferreira Gullar descreve o galo com uma aparência medieval, a crista, os esporões. E o que intriga Ferreira é o eterno preparo do galo para a luta, a guerra. Como se o tempo todo, em guarda, avistasse inimigos em uma defesa excessiva e intransigente de seu território. Marcou-me muito a expressão, ao final de uma enumeração de partes do corpo do galo, de seu “olho sem amor”. E também: “grito, fruto obscuro e extremo dessa árvore: galo. Mas que fora dele é mero complemento de auroras...”. Tocante, desdobrou um galo em partes que ainda não conhecíamos.
Então, voltemos para as nossas galinhas. Dotadas de nenhuma autonomia, as galinhas só vivem porque os seres humanos assim as querem, vivas e gordas. Se o homem não existisse, existiriam galinhas e cachorros? Este é um lado triste, galinhas e cachorros como meros apêndices da existência humana, acessórios vivos, espécies portáteis, propriedade humana. As galinhas são mais humanas do que imaginamos: são bípedes e frágeis. Ao contrário dos cachorros, com as galinhas os homens possuem uma relação de extrema indiferença e desprezo. As galinhas são seres completamente des-idealizados, não romantizados e, para a maioria, não romantizáveis. As galinhas se humanizam somente enquanto objeto de consumo, se é que assim se humanizam. As galinhas são bichos arrancados da natureza e criados como máquinas vivas que crescem e engordam para virar simplesmente carne e nada mais que alimento, como se esse alimento não fosse um ser vivo.
3 comments:
Há, Fantástico!
Muito bom mesmo...
Estou fazendo uma pesquisa sobre galinhas e esse texto me foi muito útil!
Agora quero encontrar esse conto da Clarice que eu ainda não conheço.
Valeu
ah, que bom, juliana... fico muito feliz... um grande abraço
Gostei muito do texto. Aliás, encontra um link para seu blog foi uma grata surpresa. Li brevemente alguns textos e pretendo voltar para ler mais e com mais atenção.
Resolvi comentar este post pois eu crio um galo de estimação e venho observando a mecânica de relacionamento que você cita na prática. Texto sensacional. Parabéns.
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