Wednesday, May 10, 2023

A quebra de campo

Em fevereiro de 2000, em meu primeiro ano de doutorado, comecei a lecionar no ensino superior do setor privado, e me lembro muito bem que houve um choque cultural. Não imaginava que encontraria situações tão difíceis. A principal instituição que havia me contratado descumpria a lei em vários níveis e as turmas, inclusive no curso de Psicologia, tinham inicialmente por volta de 100 a 120 alunos. E eu também lecionava em cursos como Pedagogia e Publicidade.

Os primeiros meses foram sofridos, por diversos motivos, e também para minhas cordas vocais. Tive de me virar, e rodei Brasília atrás de caixa de som e microfone. Porque não houve outra alternativa. Em algumas turmas somente o microfone ligado, em bom volume, era capaz de fazer frente às conversas paralelas de muitos dos alunos.

Em uma dessas situações, em 2001, fora da Psicologia, me deparei com uma turma gigante do curso de Publicidade, para a qual estava programada uma aula de Psicologia por semana.

Era uma turma do noturno, com muitos estudantes trabalhadores, mas também muitos filhinhos de papai, indisciplinados e agressivos.

"Eu tô pagando!”. Essa era uma expressão comum, muitas vezes vinda do fundo da sala. A ideia de muitos desses estudantes era de que eles estavam ali como consumidores e não como parceiros e protagonistas no processo de construção de seus conhecimentos.

Era um ambiente insalubre. Em uma dessas turmas, desse curso, de Publicidade, eu estava me sentindo sem saída, sem pontos de fuga, sem espaço para conseguir fazer qualquer coisa acadêmica que fosse minimamente válida ou razoável. Sentia-me constantemente hostilizado, massacrado e até ameaçado de agressões físicas.

A maioria dos estudantes estava ali somente fazendo uma espécie de consórcio de diploma. Sua concepção era a de que bastava pagar as mensalidades para ter seu certificado. Porque depois, com o diploma na mão, prestariam algum concurso ou coisa parecida.

Era uma situação difícil, e carecia de uma quebra de campo. Eu precisava fazer alguma coisa que quebrasse com aquele ciclo de agressões e boicotes às minhas aulas e à minha presença.

No curso de Psicologia eu ministrava algumas disciplinas e, dentre elas, uma cujo conteúdo era Psicanálise. Em uma dessas aulas estávamos trabalhando alguns textos de Freud, e num deles ele mencionava o período em que havia feito uso da hipnose, e por que a havia abandonado. 

O contexto acadêmico e cultural de 2001 era bem diferente do atual. Nesse período quase não se falava em hipnose em lugar algum. Nas universidades brasileiras quase ninguém tinha conhecimento mais preciso de como realizar uma indução hipnótica ou até mesmo quais eram as principais hipóteses e teorias que tentavam dar conta do fenômeno.

Em uma das aulas nas quais eu falava do abandono da hipnose por Freud, alguns estudantes me perguntaram se a hipnose realmente existia, se era realmente aquilo que viam “nos filmes”.

Freud abandonou a hipnose porque achava a técnica cansativa e pouco efetiva. Fazia a sugestão clássica de que o paciente ia dormir profundamente. Porém muitos desses pacientes diziam a ele que não estavam dormindo. Desse modo, Freud muitas vezes tinha de explicar-lhes que não era exatamente um sono comum.

Ele também sentia que a hipnose atuava acrescentando comandos e conteúdos aos pacientes. Contudo, para ele o trabalho psicanalítico deveria se desenvolver na direção contrária. Deveria ser um trabalho não de acréscimo - como no caso da pintura, por exemplo, na qual se acrescenta tinta ao papel - mas sim um trabalho de retirada, como em uma escavação arqueológica ou em um trabalho de escultura numa pedra bruta, no qual vai se retirando pedaços, lapidando e dando forma ao que se pretende.

Freud não queria acrescentar coisas. Queria descobrir, e compreender os determinantes dos problemas psicológicos dos quais seus pacientes padeciam. Para ele a hipnose acabava então atuando em sentido contrário, de modo encobridor. E havia também o risco da produção de falsas memórias. Para Freud, esses fatores mais atrapalhavam do que ajudavam.

Sua confissão de que os pacientes por vezes acabavam relatando que não estavam dormindo, de certo modo revela que ele não sentia o processo de indução hipnótica como muito efetivo. Sentia que era mais um jogo de cena do que uma técnica na qual valia a pena investir seus esforços.

Eu conhecia a indução hipnótica clássica havia uns 6 ou 7 anos, e tinha uma experiência parecida com a de Freud. A minha sensação era de frustração. Quando tentavam me hipnotizar ou quando eu tentava hipnotizar alguém, os efeitos ficavam sempre abaixo do esperado. Nunca senti minha consciência ou orientação se alterando e nunca havia observado alterações mais profundas nas próprias pessoas que eu havia tentado hipnotizar.

Aliás, eu mesmo nunca fui hipnotizado por ninguém, por mais que eu tenha me esforçado. E olha que alguns bons hipnotistas já tentaram me hipnotizar e não conseguiram. As alterações de consciência que já tive na vida foram todas induzidas por substâncias, ou produzidas espontaneamente em ocasiões nas quais eu nem tinha a expectativa ou o desejo de vivenciá-las.

Então minha experiência não era muito diferente da de Freud.

- Mas a hipnose realmente existe, professor? A pessoa perde mesmo o controle sobre si? – indagou-me um estudante, logo após tratarmos da relação de Freud com a hipnose.

Propus então àquela turma que fizéssemos uma tentativa de indução hipnótica com algum voluntário, com algum aluno que se dispusesse a se submeter ao procedimento clássico, com o objetivo de desmistificar o fenômeno, para perceberem que não havia nada de espetacular na hipnose.

Pensei:

“Novamente me frustrarei. Novamente ficaria aqui repetindo comandos verbais, de modo bem cansativo e entediante, até que a pessoa abra os olhos e me diga que somente se sentiu um pouco mais relaxada.”

- Alguém aqui gostaria de se submeter a uma indução hipnótica?
Um jovem, com cerca de 18 ou 19 anos de idade, levantou a mão.

- Vamos então programar o que faremos? Farei o possível para não expor você e não produzir qualquer tipo de constrangimento. Não perguntarei sobre seu passado (para evitar a produção de falsas memórias) e não pedirei que você faça algo vexatório.

- Não, tranquilo, professor! Manda brasa! Eu confio no senhor. Mas eu queria mesmo era ir para uma vida passada.

- Ok. Acho que podemos tentar. Porque a produção de falsas memórias sobre uma suposta vida passada tende a ser bem menos perigosa e comprometedora para si e para as pessoas com as quais você conviveu e convive atualmente. Mas quero deixar claro que não farei qualquer tipo de incursão nas aflições e problemas dos quais você padece, ok? Quanto menos exposição, melhor. Porque nosso objetivo é somente fazer uma demonstração da indução hipnótica clássica, e o quanto ela pode produzir desorientação e alterações de consciência. 

Posto abaixo uma versão resumida de como procedi:

“Sente-se numa posição que seja a mais relaxante e confortável para você. Feche os olhos e respire de modo suave e profundo. Profundo. Profundo... [porque, para a indução clássica, é importante manter um tom de voz firme, sereno, com repetição de comandos ou termos chaves e até mesmo contagens].

Conforme vou falando, você vai voltando no tempo [e repetia o comando]. Vou contar até 5, e no quando chegar no 5 você vai retornar 3 anos [sempre repetindo o comando]. 1, 2, 3, 4, 5! Você retornou 3 anos, 3 anos! [sempre repetindo e sempre de modo bem gradual e lento].”

E assim procedi, com toda a paciência, bem lentamente, com todas as repetições necessárias, quase como num canto e num balanço para fazer uma criança dormir. 

Sugeri, gradativamente, para que ele retornasse ao início de sua vida, para o dia em que nasceu e até antes disso. Quando nos encaminhamos para alguma coisa anterior ao útero e à sua concepção, sugeri que naquele momento ele já estava em outra dimensão, e que em alguns instantes abriria os olhos e se veria em uma outra vida. 

Quando pedi para que abrisse os olhos, e nos dissesse o que via e onde estava, ele relatou que era uma espécie de cavaleiro medieval, e que estava descansando, à beira de uma estrada. Sugeri que ele estava com fome. Eu lhe daria uma maçã, que ele comeria com gosto. Dei-lhe meu estojo de lápis, que era feito de com um tecido emborrachado.

- Coma esta maçã. Ajudará a matar tua fome!

Levou o estojo à boca, deu-lhe uma mordida imaginária e jogou-o no chão.

Pensei:

“É isso. Falhei novamente. Ele percebeu que é somente um estojo.”

- O que aconteceu? Por que você jogou no chão? 

- Tá podre!

Fiz mais uma série de comandos e, para a minha surpresa, as coisas tomaram um rumo completamente diferente e surpreendente. 

- Eu tava mesmo lá, gente, numa outra vida! Foi muito bizarro. Eu não imaginava que a hipnose fosse algo real. Foi muito doido. – relatava esse estudante, atônito com tudo o que havia experenciado.

Antes desse dia eu somente havia tentado hipnotizar as pessoas individualmente. Nunca antes havia tentado fazer induções hipnóticas em grupo, com grupos de pessoas. E isso, penso eu, faz uma grande diferença. Porque uma coisa é alguém sozinho e outra, diferente, é seu comportamento em grupo.

Tratei dessa distinção, em maiores detalhes, em meu livro, “Hipnose: fato ou fraude? (2006)”. Detalhes esses que não abordarei aqui, no espaço restrito de uma crônica. Mas é fato: grupos podem potencializar bastante a expressividade e o extremismo de muitos comportamentos, principalmente quando as pessoas comandadas têm a responsabilidade por seus atos concedida a líderes ou diluída na coletividade.

Portanto, quando realizamos induções hipnóticas em grupo, há uma tendência muito maior para que ocorram manifestações mais espetaculares.

A partir desse dia comecei a investigar melhor o que era a hipnose de palco. E percebi que aquelas demonstrações de hipnose, com formato espetaculoso, eram algo relativamente simples de ser realizado.

Como esse tipo de demonstração envolve mais as pessoas que estão assistindo, senti que era um recurso interessante para se introduzir o tema, que depois seria trabalhado de forma devidamente crítica e acadêmica. Eu fazia uma demonstração de palco e logo em seguida fazia o possível para que tivéssemos o olhar mais cético e crítico possível, sem mistificações ou qualquer tipo de alegação que propagasse a hipnose como uma panaceia ou um superpoder.

E é aí que entra a história que comecei e não terminei de contar.

Eu havia tentando de tudo com aquela turma do curso de Publicidade. Havia passado filmes, feito maiêutica, ouvido-os acerca do que gostariam de estudar na área de Psicologia, etc. E tudo, por ora, havia sido em vão. 

- Hoje eu gostaria de propor uma atividade diferente a vocês – foi o que anunciei, em mais uma tentativa de quebra de campo.

- Quero fazer uma demonstração de hipnose de palco!

Ficaram curiosos e, a maioria, animada. 

Não havia um bom vínculo comigo, e isso talvez viesse a dificultar ou até impedir todo o processo. Mas raramente somos unanimidade pura. Mesmo nas piores turmas há geralmente alguns estudantes que valorizam nosso trabalho e que, por consequência, seriam os mais suscetíveis à nossa influência. 

Fiz uma triagem rápida:

- Coloquem seus braços à frente. O braço direito está muito pesado, muito pesado, com um saco de arroz em cima, e ele vai se cansando, se cansando e, por mais que você tente mantê-lo imóvel, ele vai vagarosamente descendo, descendo. E, amarrado ao braço esquerdo, há um balão, que o deixa leve, leve, e ele vai assim subindo, subindo...

Prefiro essa triagem, porque numa sala com dezenas de pessoas cerca de 15% delas irá rapidamente responder ao comando. Em menos de 2 ou 3 minutos eu já podia observar algumas pessoas com os braços bem espaçados, bem desalinhados, e são essas que os hipnotistas pegam para fazer a demonstração. 

Peguei 4 ou 5 estudantes e os coloquei sentados, na frente da sala, perto da lousa. Pedi para que fechassem os olhos e comecei a demonstrar a sugestão hipnótica com cada um deles:

“Vou tocar a tua garganta e quando eu tocar nela, você ficará mudo, completamente mudo. (...) Quando eu tocar em teu ombro, você terá uma crise de risos. (...) Levante-se. Você está agora em teu cavalo, correndo o mundo todo em uma aventura de filmes de faroeste.”

Essa última sugestão, para que a pessoa cavalgasse, foi feita a um dos estudantes mais baderneiros e desrespeitosos da sala. Ele então, parado, começou a se movimentar como se estivesse cavalgando, e empinava repetidamente a bunda de modo um pouco bizarro. Seus colegas chegaram a se deitar no chão de tanto rir. E ele mantinha sempre o semblante grave, sério, de quem estava em um tiroteio, em uma batalha, a fugir desesperadamente com seu cavalo, com sua bunda a pular para o alto repetida e freneticamente.

- Professor do céu? O que foi isso? Sinistro... – repetiam alguns.

- Vocês riram da expressão espontânea do colega. Talvez ele não esteja se sentindo bem com isso. Marcelo (nome fictício), peço-lhe minhas sinceras desculpas se de algum modo você se sentiu constrangido...

- Magina, professor! Foi sinistro! Foi uma viagem alucinante. Quem tá na chuva é pra se molhar. Também tô aqui, rindo junto do que eles tão me contando que aconteceu. Porque eu não lembro de nada. Irado!

Eu enfim havia conseguido produzir alguma quebra de campo. Não transformou aquela turma em um grupo fácil de se lidar, mas foi fundamental para que eu conseguisse terminar aquele semestre com muito mais tranquilidade.

E esse estudante, antes bem difícil, se transformou em um aliado. Um aliado atrapalhado, confuso e ainda muito faltoso. Porém, depois da hipnose, ele não era mais alguém que tinha potencial para me agredir fisicamente. E esse já era um benefício muito grande.

Passou a se comportar de modo um pouco esquisito e a me tratar muito bem, com exagerada deferência. Minha sensação era a de que eu havia conquistado o coração do bandido mais perigoso do pedaço.

Friday, May 05, 2023

Acalme-se...

Um de nossos pacientes do CAPS sempre alegra os grupos dos quais participa. Porque é muito espirituoso e realmente engraçado. Sabe que é engraçado e sempre inventa histórias divertidas ou até bizarras. Os outros pacientes dão risadas, se soltam, relaxam. Ficam todos mais leves e ele fica nitidamente feliz em saber que ajudou na descontração geral.

Tem pouco mais de 40 anos de idade e apresenta déficit cognitivo. Não sabe lidar com dinheiro ou números, quando esses passam de 10 unidades ou algo próximo. Mas sabe falar em milhões ou bilhões quando conta suas histórias.

Tem passe-livre e vai, sozinho, para tudo o que é canto do Distrito Federal. Cumprimenta e conversa com todas as pessoas com as quais cruza pelas ruas. 

Para seu nível de instrução, tem excelente oratória e retórica. Sua fala é envolvente e ele geralmente se apresenta com outro nome (que não o próprio) como se fosse político ou alguma pessoa poderosa. Diz que é advogado, logo em seguida se apresenta como médico, que tem 74 anos de idade, casos amorosos com suas secretárias e uma história de vida repleta de grandes projetos, aventuras amorosas e também as desventuras de um grande homem.

- Hoje em dias as pessoas estão muito estressadas, se aborrecendo com pouca coisa, e querendo partir para a briga por qualquer motivo! – dizia, como sempre, com vigor, como se estivesse na tribuna de uma câmara legislativa.

- Eu estava no trânsito e quase fui atropela por um rapaz que dirigia uma caminhonete enorme! Freou bem em cima de mim e saiu de seu veículo esbravejando. Era um sujeito enorme. Tinha uns 2 metros de altura. E eu, por sorte, consegui acalmá-lo.

- O que você fez para acalmá-lo? – indaguei.

- Eu lhe disse: “Acalme-se, meu senhor. E dance um bambolê!”.

O tom desse comando para que o sujeito de 2 metros de altura se acalmasse era firme, porém bem suave.

- E ele se acalmou?

- Sim, e começou a dançar com o bambolê. E assim sua expressão foi se alterando ao ponto de ficar bem tranquilo, relaxado e sorrindo plenamente. Desde o momento em que ele esbravejou comigo, juntou uma multidão. Mas, conforme ele foi se acalmando e, por fim, sorriu, plenamente, a multidão se emocionou. Choraram de emoção.

Não cheguei a chorar de emoção, mas essa história memorável ajudou a alegrar meu dia. 

E acho que preciso urgentemente providenciar alguns bambolês, para estarem sempre comigo, onde quer que eu esteja. Porque basta um bambolê na mão e cinco palavrinhas mágicas: “Acalme-se... E dance um bambolê!”. 


Tuesday, May 02, 2023

A morte no espelho de minha tranquilidade

Senti uma “energia” diferente hoje no ambiente de trabalho, no CAPS. E já me refiro assim, com o termo “energia”, que é mesmo para dar um tom sarcasticamente místico a algo que não tem nem nunca teve relação alguma com o conceito de energia a quem pertence, a Física.

No SUS, ali em nosso CAPS, são tantas as dificuldades com as quais lidamos - com inúmeros conflitos na convivência diária, durante anos – que, havendo uma calmaria, é realmente de se estranhar.

Hoje, pela manhã, senti que fui muito bem tratado por todos os colegas com quem interagi. Todos me dirigiram um olhar empático, terno. Quando estávamos com cerca de 5 a 7 pessoas juntas, numa sala, interagindo de modo informal e tranquilo, comuniquei-lhes esta impressão:

- Não sei por quê, mas estou hoje sentindo uma energia muito diferente nesse CAPS. Todo mundo com quem interagi me tratou com muita gentileza. Até o olhar de muitos aqui está diferente.

- Será que você vai morrer? – perguntou-me uma colega, sorrindo, em tom de galhofa.

- Hehehe... Como assim?

- Dizem que quando estamos nos sentindo muito bem, sem saber por quê, é sinal de que vamos morrer.

- Nossa, isso seria a glória. Imagine se, diante da iminência da morte, tivéssemos a felicidade súbita como presente. Isso talvez impedisse muitos suicídios, não?

E isso me fez lembrar de décadas atrás quando, bem mais jovem, com meus vinte e poucos anos, eu sentia vontade de morrer quando estava muito feliz. 

“Pronto! Estou feliz, satisfeito, realizado! Agora posso morrer!”

A sensação era análoga a da “petite mort” (pequena morte), como os franceses costumavam classificar pequenos intervalos de inconsciência e que depois passou também a se referir à sensação de entorpecimento após o orgasmo.

Porque é assim: a excitação se acumula, cresce, se agigante, carrega consigo um prazer intenso, que por fim explode na beira da praia do amor, da ilusão, da viagem de se perder no outro ou no mundo, e assim eis o orgasmo de quem desaguou na imensidão de tudo. Resta então o paraíso do adormecimento eterno, para o qual se arrasta toda a existência, em seu empuxo de retornar ao nada, de onde tudo surgiu.

Isso pode carinhosamente ser a sombra que nos acolhe em diversos modos de entorpecimento: com substâncias psicoativas, com música, com dança, com realizações atléticas extremas. É o estado de transe que pode se apossar de nós em ritmos avassaladores. 

Somente para se ilustrar um único exemplo, eu mesmo já me senti assim, por muitas vezes, ouvindo e sendo embalado vigorosamente por músicas que vivencio como grandiosas, e que certa vez até fez com que eu escrevesse esse pequeno texto:

“Há músicas em que dá vontade de morrer nelas, delas, ter overdose de tanto ouvi-las, mergulhar em sua realidade infinita e parar logo o coração e tudo se acabar, para nunca mais voltar, para se esquecer de vez de tudo isso, de si mesmo, principalmente. Há músicas que fazem com que eu me esqueça de mim mesmo, que eu morra sempre que as escute, para poder voltar renascido, outro, purificado, longe de todo o ódio, de toda a dor e distante de toda a lágrima inútil, mas perto daquela que nos agiganta e nos explode em sentimentos de estar ali totalmente conectados com a vida.”

E assim a vida se conecta com a morte, com uma a alimentar a outra, no circuito e na transformação constante de tudo o que é vivo. 

Mas gostei tanto da analogia da colega de trabalho, que dali em diante mergulhei nessa ideia, para egoisticamente me deleitar um pouco com a aventura de minha morte, no espelho de minha tranquilidade de aceitá-la como inevitável e bem-vinda. 

Digo “egoisticamente” porque minha vida não é só minha. É minha e de quem cuida ou depende de mim. Mas é só minha no final das contas. Porque no final das contas, no final da curva da mundo, no canto da solidão irrevogável de cada um, só resta a pessoa consigo mesma, presa em seu corpo, com destino ao sofrimento. No final é isso ou o mundo a nos carregar e nos embalar em seu colo dedicado à nossa paz e conforto, como um bebê amado por sua mãe ou cuidador.

Digo “egoisticamente”, porque sei do tanto que a minha vida é também um dever para com quem amo e cuido.

Então, egoisticamente fiz um passeio por minha morte, anunciada no barulhinho do vento em meus ouvidos enquanto pedalava para casa. Anunciada a cada olhada que eu dava no céu a querer me tragar para sua imensidão, em mundos a florescer por detrás de nuvens longínquas, onde morava e repousava meu sonho, no sentimento de último e prazeroso olhar a lançar sobre tudo. Respirava tranquilo. Abraçava a ideia da danada como redenção florida e merecida, a guardar debaixo do travesseiro de minhas memórias aconchegantes de todos os bons momentos que vivi nessa vida.