Março de 1991. Eu tinha 18 anos. Eram meus primeiros dias de aula na graduação, no curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (a Filô), em Ribeirão Preto.
Desde a matrícula, em janeiro ou fevereiro de 1991, até 1993, quando eu já estava no quinto semestre do curso, tive diversos atropelos e desencontros, dentre alguns felizes encontros, repletos de redenção.
Lembro perfeitamente. Cheguei para a matrícula vestido com uma camiseta amarela, com alguma estampa infeliz, talvez com coisas bobas escritas aleatoriamente em inglês. Era uma camiseta velha, desbotada, cavada, que eu mesmo havia cortado com uma tesoura, sem qualquer tipo de costura. Eu também vestia uma bermuda preta, também muito velha, um par de tênis Bamba preto nos pés (daqueles mais simples, que pareciam Congas), sem meias e uma cueca roxa, daqueles modelos antigos que ninguém mais usava, bem velha, com dupla entrada na frente. Era muito provavelmente uma cueca com uns 5 anos de uso, herdada de meu irmão mais velho, e talvez tivesse até um furo na bunda.
Fui sozinho. Pedalei cerca de 10 km, num sol escaldante. Pensei que seria algo trivial e burocrático: assinar alguns papéis e cair fora. E eu não imaginava que na Filô houvesse trote ou qualquer imbecilidade similar.
Porém, para minha infelicidade, em volta da porta de entrada do bloco do auditório, onde estavam realizando a matrícula, havia uns 20 veteranos, e alguns deles sedentos para maltratar os calouros. Outros mais tranquilos, somente querendo nos conhecer.
Percebi que havia algumas veteranas da Psicologia, que somente queriam nos conhecer. Uma delas, do segundo ano, me olhava dos pés à cabeça.
- Qual teu nome, bicho?
- Adriano.
- Por que você prestou Psicologia?
- Por necessidade.
- Como assim? – perguntou-me, sorrindo, estranhando a resposta.
- Estudar Psicologia pra mim não será somente como estudar qualquer outra coisa. Minha necessidade é visceral. Hoje não consigo imaginar minha sobrevida fora da Psicologia...
Ela continuava a me olhar como se não estivesse entendendo nada do que eu falava. E nem eu sabia muito bem o que eu mesmo estava falando. Desencontro, logo no primeiro minuto, apesar de toda a gentileza dela.
Eu já estava para entrar no auditório, quando um veterano da Biologia apareceu com sua turma.
- Ei, bicho, onde você pensa que vai? Não vai entrar agora pra fazer sua matrícula não, querido. Você vem com a gente! Vamos dar um passeio.
Fui pego à força e levado ao banheiro. Senti-me sequestrado. Dentro do banheiro éramos eu mais uns quatro veteranos, todos da Biologia e da Química. Ninguém da Psicologia.
- Você vai fazer o seguinte. Vai tirar essa bermuda e vestir tua cueca por cima dela!
- Nem a pau! – respondi, da forma mais serena possível.
- Vai sim! E sem dar um pio.
- Nunca.
Esse jogo de braço se estendeu por alguns minutos. Esse veterano da Biologia, que se comportava como o líder dos quatro, foi ficando bem nervoso. Saiu do banheiro. Voltou alguns minutos depois, e bem irritado.
- Phohrra! Não acredito que esse moleque ainda não fez o que a gente mandou. Você é bicho e tem que me obedecer, cahrallho!
O banheiro tinha um corredor, e ele disse isso gritando, dando murros nas paredes e vindo em minha direção. Era bem maior que eu e tentou me assustar.
Como eu estava numa fase de excelente preparação física, com porte atlético, não tive medo algum dele. A minha sensação era somente a de que um rapaz adiposo estava querendo me intimidar.
- Desculpa aí, mas não vou não. Não vou fazer nada do que você mandar. Tem mais alguém aí fora pra me fazer companhia com a cueca por cima da roupa? Se tiver, eu encaro. Se não, nada feito. Vocês não vão me pegar pra Cristo não.
Esse sujeito somente fazia gritar e socar as paredes, fazendo jus a seu apelido, Brucutu. Era outro apelido, mas posto aqui algo similar, para preservar a identidade do infeliz.
Havia um outro rapaz, da turma do Brucutu, que pintava meu rosto. Esse parecia mais tranquilo. Seu apelido era Chupeta.
- Phohrra, Chupeta... Aqui não é a Filô? Ceis não são mais papo cabeça? Não tô entendendo esse Brucutu querendo sair no braço comigo.
- Não, pode deixar, Adriano. A gente vai fazer um trote legal com você.
E assim Chupeta serenamente pintou um símbolo da paz na minha testa e me liberou para a matrícula, porque careca eu já estava, desde o trote que meu próprio irmão mais novo havia me dado uma ou duas semanas antes.
Entrei no auditório, fiz minha matrícula, e um representante do centro acadêmico muito gentilmente me deu as boas-vindas e uma série de informações importantes.
Só ali, dentro do auditório, eu percebera o quanto a gritaria do Brucutu havia sido estressante. As pessoas que estavam lá fora perceberam a truculência. Eu entrei no auditório batendo boca com ele. Os servidores da USP ficaram um pouco assustados. Fomos repreendidos. Não era exatamente um bom começo, exceto pelo acolhimento gentil do rapaz do centro acadêmico e do Chupeta.
Fui embora sentindo que eu havia me matriculado no tumulto, sendo uma das causas do tumulto, e talvez tendo passado bem perto de alguma agressão física.
“Mas tudo bem, tudo bem. Faz parte.” – pensei, após respirar fundo.
Fui para casa. Umas duas ou três semanas depois começariam as aulas.
Mas eu faltei à primeira semana de aulas. Havia feito uma cirurgia de hérnia inguinal, no SUS, poucos dias antes, e mal conseguia andar. Como eu iria de ônibus, não havia como.
Uma semana depois do início das aulas eu por fim achei que tinha condições de pegar um ônibus que, com destino à USP, passava somente a cada 45 minutos.
O ponto se situava a 500 metros de minha casa. Segundo o Google isso corresponde a 6 minutos da casa onde eu morava. Mas eu ainda estava debilitado e caminhava com dificuldades, bem lentamente.
Quando eu estava a 50 metros, vi que o ônibus se aproximava. Tentei correr, mancando. O motorista percebeu e acho que esperou que eu chegasse até o ponto.
Cheguei à USP atrasado em uma semana e mancando.
- O que aconteceu? Por que você está andando curvado?
- Fiz uma cirurgia de hérnia inguinal.
Conversa vai, conversa vem, e assim perceberam que eu tinha muitas cicatrizes, devido a suturas com pontos, pelo corpo todo, cada uma contando a história de um acidente ou uma cirurgia diferente.
- Cahraio, bicho. Você parece o Frankenstein.
E assim fui carimbado com um novo apelido, Frank, que perdurou por todo o período de graduação.
Nos primeiros dias de aula eu estava bombardeado por vários sentimentos diferentes. Fascinação por aquele novo universo que se abria, com suas inúmeras possibilidades e um pouco de ansiedade, porque era tudo muito novo e com muita coisa ainda a ser decifrada.
Meu sentimento em relação ao curso ser integral, e de haver na USP toda uma estrutura para isso, era de muita alegria. Havia um restaurante universitário, a preço subsidiado, o bandejão.
Isso era incrível! Se eu quisesse, eu podia ficar na USP nos três períodos (manhã, tarde e noite) porque, antes de tudo, lá havia alimentação balanceada e acessível.
Muitos reclamavam da comida. Diziam que tinha salitre, "para diminuir o desejo sexual dos estudantes". Que o arroz era gato, porque se arremessado ao teto, grudava. Que o feijão era chuá-pim-pão, porque seria muito aguado. Que o bife era James Bond, duro e com nervos de aço.
Mas para mim nunca houve problema. Eu amava a USP e amava tudo aquilo, porque o banquete do bandejão não era a comida, mas as companhias, as preciosas e belas amizades que cultivei enquanto fazia minhas refeições.
Eu estava ansioso por aprender tudo o que fosse possível. Sentia que precisava aprender muito em termos acadêmicos, mas principalmente sobre a vida, sobre como se viver melhor, de modo mais saudável e feliz.
Foram muitas horas de aulas, de estudo, de esforço, mas também muitas horas conversando, confraternizando, bebendo ou fumando um baseado com amigos e gente de todo o jeito.
A primeira semana foi de deslumbre, para todos os estudantes. Havia um sentimento generalizado de desbravamento do mundo e de si.
E uma coisa ainda me incomodava. Alguns veteranos, até mesmo da Psicologia, insistiam em tratar mal os calouros. E achava esse tipo de comportamento ridículo, e não deixava de dizer o que pensava.
Ainda na primeira semana, eu jantava no bandejão, e uma turma estava de saída para uma festa. Peguei carona com eles. Entrei em algum carro e fui.
Era na casa de uma veterana. Havia muita gente, e a maioria ficou na calçada e até na rua. Meu sentimento era o de que todos bebiam e muito. Então eu bebi também.
Vi que havia uma rodinha, com todos cheirando lança-perfume, que me ofereceram.
- Obrigado, mas não curto não. Hidrocarbonetos phodem com o cérebro. Até cocaína é mais saudável.
- Ah, bicho! Você é chato pra cahrallho! Sai daqui se não te dou uma porrada – esbravejou uma veterana.
- Uai, pode vir. Eu to operado, estrupiado, mas acho que consigo chutar teus peito.
- Seu filho da phutta! Eu vou te quebrar no meio!
E assim tiveram de segurá-la. Ficou fora de si. Babava de raiva. Eu fiquei apreensivo, mas sem desesperar. Tinha confiança de que ela não seria capaz de me espancar, mesmo com toda a debilitação pós-cirúrgica.
E também fiquei chateado. Interagi com outras pessoas, e fui bem tratado pela maioria. Um veterano da Psicologia se aproximou.
- Poxa, cara, eu vi o que rolou. Você tá bem?
- Tô tranquilo.
Trocamos mais algumas palavras. Falamos de coisas boas e difíceis. Ele me falava de sua vida, de suas desventuras, e seus olhos marejavam. No final ele me deu uma carona até minha casa, que era bem mais distante que a dele. Chegando a meu destino, me deu um abraço.
- Falou, Frank! Muito bom conversar contigo!
- Tamos aí, meu irmão!
Seus olhos marejaram novamente. Foi-se embora, com um cigarro aceso na boca.
E foi assim, com muitos tropeços, até 1993.