Wednesday, April 02, 2014

Filhos do tráfico

Ele e seu amigo foram levados, por alguns inimigos, para um local bem distante, no meio do mato, e esses disseram que eles dois iriam morrer. Ele com 15 anos de idade e o colega em idade bem próxima disso. Deram vários tiros em seu amigo, pois “não fora capaz de fingir que havia morrido”. Ele, tendo percebido isso, pensou: “vou fingir que morri no primeiro tiro”. Restava pouca munição, a qual havia sido quase toda gasta com o colega do lado. 

Então miraram em sua nuca, para que fosse um único e certeiro disparo.
Após ser alvejado, não desmaiou, mas foi capaz de simular que o fora. Foram embora pensando que estava morto. Não estava. O tiro acertou a parte posterior de seu pescoço, trespassando-o, com lesão de sua medula espinhal.

Totalmente paralisado do pescoço pra baixo, permaneceu ali por dois dias inteiros, com a cara na terra cheia de formigas e bichos, e sol a queimar as suas costas. Ficou ali, a esperar por um milagre, por socorro no fim do mundo e talvez no fim de sua vida, sua tão curta vida humana de somente 15 anos de idade. Mas eis que, depois de dois dias, é encontrado por um vaqueiro e é por fim socorrido.

Fui conseguindo saber um pouco de sua história, reunindo depoimentos de alguns familiares e dele mesmo. Ao lado de seu leito, pergunto:

“O que foi o mais difícil nesses dois dias de espera, de agonia? O sol, dores... insetos?”

“Foi a sede...”, sem qualquer expressão de vitimização.

Tomara um tiro que o deixara quase totalmente paralítico, a esperar com a cara na terra, por socorro, por dois dias, e seu sofrimento podia ser resumido em uma única palavra: sede.

Já no hospital, ainda não estava salvo. A coisa piorou. Seu quadro se agravou e entrou em coma, por uns cinco dias. Quando acordou, já estava traqueostomizado e sem voz. Agora não se mexia e também não tinha mais o som de suas cordas vocais. E mais um absurdo: ele é capaz de emitir alguns sons enquanto tenta falar. São quase uns sussurros – coisa que eu nunca pude observar da boca de ninguém que estivesse traqueostomizado. E é fácil de ler seus lábios. Da para compreender quase tudo o que ele tenta dizer.

Tem progredido bastante e está feliz que sim, que certamente voltará a engolir e poder comer. Está sorridente e um pouco radiante. E nunca ninguém ali o viu, naquele leito, chorando.

“Vou voltar a comer. Tô com muita saudade de poder comer”, consigo ler em seus lábios.

“E qual é o prato que você tá com mais saudade de comer?”

Pensei em sorvete, lasanha, tortas, pastel...

“Frango...”

“Frango? Frito ou assado?”

“Frango ao molho!”

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