Coloquei, como podem ver, as aspas antes do ponto de interrogação. Por quê? Porque esta ideia é mais comumente enunciada em sentido afirmativo. Há quem a atribua a Nietzsche e há quem a atribua a Ivan Karamazov, personagem de “Irmãos Karamazov”, de Dostoiévski. Pretendo me concentrar na principal implicação dessa ideia: a de que a moral deixa de existir com a inexistência de Deus; a de que não podemos sobreviver, enquanto sociedade ou civilização, sem religião. Fui buscar algum esclarecimento
em Comte-Sponville. Para ele não há relação necessária entre uma coisa e outra:
“Não muda em nada, tampouco, ou em quase nada, a moral. Não é porque você perdeu a fé que vai de repente trair seus amigos, roubar ou estuprar, assassinar ou torturar! “Se Deus não existe, tudo é permitido”, diz um personagem de Dostoiévski. Claro que não, já que eu não me permito tudo! A moral é autônoma, mostra Kant, ou não é moral. Quem só se impedisse de matar por medo de uma sanção divina teria um comportamento sem valor moral: seria apenas prudência, medo do policial divino, egoísmo. Quanto a quem só faz o bem para a sua salvação, não faria o bem (já que agiria por interesse, e não por dever ou por amor) e não seria salvo. É o ápice de Kant, da Luzes e da humanidade: não é porque Deus me ordena alguma coisa que está certo (porque nesse caso poderia ter sido certo, para Abraão, matar seu filho); é porque uma ação é boa que é possível acreditar que ela é ordenada por Deus. Não é mais a religião que funda a moral; é a moral que funda a religião. É onde começa a modernidade. Ter uma religião, precisa a Crítica da razão pura, é “reconhecer todos os deveres como mandamentos divinos”. Para os que não têm ou deixaram de ter fé, já não há mandamentos, ou antes, os mandamentos já não são divinos; restam os deveres, que são os mandamentos que impomos a nós mesmos.” (Comte-Sponville, 2002, p. 46-47)
Ele enfatiza que nenhuma sociedade vive sem fidelidade, sem compromisso entre as partes. Somos fiéis ao que nos propomos, pois somente assim é possível viver. Como animais sociais, dependemos profundamente uns dos outros. A moral é um fator fundamental de sobrevivência, seja ela religiosa ou laica. Ela funda e é anterior à religião, como a qualquer concepção acerca de sua origem. A ausência de fundamentos morais é um risco, tanto para a sobrevivência do indivíduo quanto de seu grupo.
E o que dizer então da modernidade, a qual ele mesmo cita nesta passagem? O que estamos fazendo há cerca de 500 anos, no mundo ocidental, não é exatamente isso, tentando organizar a vida em sociedade sem se recorrer à religião? Eis a laicidade: julgar o que é bom e o que é mau por meio do debate racional, levando em conta os contextos específicos das dificuldades e conflitos em questão. Ou seja, há cerca de 500 anos estamos construindo um mundo que busca deixar religião e argumentos de autoridade (o famoso “porque está escrito” neste ou naquele livro sagrado) do lado de fora deste debate. Quem irá construir nossa moral somos nós, com base geralmente no objetivo de diminuir a cota de sofrimento no mundo como um todo.
Em outras passagens deste belo livro, ele sugere que em religiões (ou sabedorias) como o budismo, taoísmo e confucionismo, por exemplo, não existe a figura de Deus, de um criador transcendente, e nem mesmo o cultivo da fé. Nestas tradições qualquer coisa parecida com a fé é evitada. Acreditar, esperar pelo melhor, sempre, que ele aconteça, apesar de todas as adversidades, não faz parte dos ensinamentos destas doutrinas. Trata-se mais do cultivo do desapegar-se: não lamentar o passado e não esperar nada do futuro. E, portanto, se não se espera nada do futuro, não há fé. Ou seja, trata-se mesmo de não ter fé, de evitá-la. Nesta perspectiva, ela é considerada um mal a ser evitado.
Também cabe citar o pensamento de Michel Onfray. Em seu “Tratado de ateologia” ele inverte o enunciado. Seria, segundo ele, o contrário: se Deus existisse, tudo seria permitido. Em nome do Bem (de um bem absoluto), na história, geralmente se fez o pior. Religiões e morais, as quais se tomaram por absolutas e únicas, negando violentamente todo e qualquer possibilidade de diferença e diversidade, cometeram as maiores atrocidades da história. Em nome de Deus, de um um bem absoluto e inquestionável, tudo vale, tudo é permitido. Tudo é permitido para defender o nome dele, para defender o que é inquestionavelmente bom.
Sem dúvida, por esse prisma, fica até meio assustador. Conceber a existência de algo absolutamente bom pode justificar qualquer ato ou violência em sua defesa. Por outro lado, se houvesse de fato algo absolutamente bom, será que este algo precisaria de nossa defesa? Se Deus existe e é absolutamente perfeito e bom, ele não carece que o defendamos, que lutemos por ele, ou qualquer coisa similar.
Numa concepção mais aristotélica, Deus, como primeiro motor imóvel de tudo, não seria comovido nem locomovido por nada. A consequência lógica é que seria uma entidade fora do universo (ex-machina), totalmente indiferente, por exemplo, à realidade e sofrimento dos seres vivos. Deus, nesta concepção, “viveria” somente de si mesmo. Todo resto somente teria sentido e existiria em função dele. Todo o resto, imperfeito, tenderia a ele, tenderia à sua perfeição. Tudo se movimentaria na direção de Deus e em amor a ele, o qual, por sua vez, sendo absolutamente perfeito, “viveria” somente de si mesmo.
Este tipo de concepção, ao meu ver, convoca uma espiritualidade mais ativa e alinhada com os princípios modernos. Pois não se trata de esperar por Deus, de pedir sua ajuda, chamá-lo, ou qualquer coisa similar a imaginá-lo como uma entidade pessoal. Deus, neste sentido, não é alguém. É a fonte de tudo, sem corpo, sem individualidade. Está mais para algo do que para alguém. É também próximo do Deus de Spinoza, o qual, por sua vez, muito se assemelha à própria natureza, a totalidade. E assim Comte-Sponville pergunta: e isso não seria então a própria natureza?
Referências:
Comte-Sponville, A. (2007). O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus. São Paulo: Martins Fontes
Onfray, M. (2007). Tratado de ateologia. São Paulo: Martins Fontes.