Friday, June 17, 2011

"Eu era feliz e não sabia"?


“Eu era feliz e não sabia”. Sempre achei essa frase meio tola. Por quê? Porque, depois que passou, depois que os males já foram resolvidos, depois que ficaram para trás, sinto que tendemos a superestimar a alegria passada e a subestimar a dor de ontem, hoje já resolvida. Nostalgia, é isso. Coisa de gente triste e masoquista: coleção de lembranças boas para lamentar o presente, para maltratá-lo e desvalorizá-lo ainda mais. Está ruim, está sofrendo? Comece a comparar com o que já foi, e que foi melhor, para ficar (o presente) pior ainda.
Nostalgia “é a falta do passado, na medida em que houve. Distingue-se da lamentação (falta do que não foi). Opõe-se à gratidão (a lembrança reconhecida do que ocorreu: a alegria presente do que foi) e à esperança (a falta do porvir: do que talvez venha a ser). Tendo a pensar que a nostalgia, desses quatro sentimentos, é o primeiro, e que toda esperança, especialmente, nada mais é que a expressão – ou o remédio imaginário – de uma nostalgia prévia. Seria preciso reler Platão e Santo Agostinho, desse ponto de vista, à luz de Freud. E reler também Epicuro: veríamos neles que a gratidão é o único remédio verdadeiro contra a nostalgia” (Comte-Sponville, 2003, p. 419)
Ou, ainda com o pensamento de Comte-Sponville, porém em outro texto, em seu “Pequeno tratado das grandes virtudes” (2000):
“A gratidão se regozija com o que aconteceu, ou com o que é; ela é, portanto, o inverso do arrependimento ou da nostalgia (que sofrem com um passado que foi, ou que não é mais), como também da esperança ou da angústia, que desejam ou temem (desejam e temem!) um futuro que ainda não é, que talvez nunca seja, mas que as tortura com sua ausência” (p. 150).
Marcel Pagnol nos ajuda no arremate: "A razão pela qual algumas pessoas acham tão difícil serem felizes é porque estão sempre a julgar o passado melhor do que foi, o presente pior do que é, e o futuro melhor do que será". Pessimismo em relação ao presente, como já discuti aqui, é uma grande furada. É mais seguro o otimismo no presente, a gratidão (ver o lado bom, dar valor ao que se tem), do que lançá-lo faminto ao futuro, inflado de desejos acerca do que ainda não existe.
Concluindo, em termos psicanalíticos, aproveitando que Comte-Sponville cita Freud, é até mesmo mais comum o contrário. É mais comum, por uma questão de proteção, de sobrevivência (e também por falta de maturidade, discernimento), somente nos darmos conta da intensidade dolorosa de certos sofrimentos depois que já passaram, invertendo-se assim o jargão: “Eu era infeliz e não sabia”.

Referências
Comte-Sponville, A. (2000). Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes.
Comte-Sponville, A. (2003). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.


Sunday, June 05, 2011

“Se Deus não existisse, tudo seria permitido”?



Coloquei, como podem ver, as aspas antes do ponto de interrogação. Por quê? Porque esta ideia é mais comumente enunciada em sentido afirmativo. Há quem a atribua a Nietzsche e há quem a atribua a Ivan Karamazov, personagem de “Irmãos Karamazov”, de Dostoiévski. Pretendo me concentrar na principal implicação dessa ideia: a de que a moral deixa de existir com a inexistência de Deus; a de que não podemos sobreviver, enquanto sociedade ou civilização, sem religião. Fui buscar algum esclarecimento em Comte-Sponville. Para ele não há relação necessária entre uma coisa e outra:
“Não muda em nada, tampouco, ou em quase nada, a moral. Não é porque você perdeu a fé que vai de repente trair seus amigos, roubar ou estuprar, assassinar ou torturar! “Se Deus não existe, tudo é permitido”, diz um personagem de Dostoiévski. Claro que não, já que eu não me permito tudo! A moral é autônoma, mostra Kant, ou não é moral. Quem só se impedisse de matar por medo de uma sanção divina teria um comportamento sem valor moral: seria apenas prudência, medo do policial divino, egoísmo. Quanto a quem só faz o bem para a sua salvação, não faria o bem (já que agiria por interesse, e não por dever ou por amor) e não seria salvo. É o ápice de Kant, da Luzes e da humanidade: não é porque Deus me ordena alguma coisa que está certo (porque nesse caso poderia ter sido certo, para Abraão, matar seu filho); é porque uma ação é boa que é possível acreditar que ela é ordenada por Deus. Não é mais a religião que funda a moral; é a moral que funda a religião. É onde começa a modernidade. Ter uma religião, precisa a Crítica da razão pura, é “reconhecer todos os deveres como mandamentos divinos”. Para os que não têm ou deixaram de ter fé, já não há mandamentos, ou antes, os mandamentos já não são divinos; restam os deveres, que são os mandamentos que impomos a nós mesmos.” (Comte-Sponville, 2002, p. 46-47)
Ele enfatiza que nenhuma sociedade vive sem fidelidade, sem compromisso entre as partes. Somos fiéis ao que nos propomos, pois somente assim é possível viver. Como animais sociais, dependemos profundamente uns dos outros. A moral é um fator fundamental de sobrevivência, seja ela religiosa ou laica. Ela funda e é anterior à religião, como a qualquer concepção acerca de sua origem. A ausência de fundamentos morais é um risco, tanto para a sobrevivência do indivíduo quanto de seu grupo.
E o que dizer então da modernidade, a qual ele mesmo cita nesta passagem? O que estamos fazendo há cerca de 500 anos, no mundo ocidental, não é exatamente isso, tentando organizar a vida em sociedade sem se recorrer à religião? Eis a laicidade: julgar o que é bom e o que é mau por meio do debate racional, levando em conta os contextos específicos das dificuldades e conflitos em questão. Ou seja, há cerca de 500 anos estamos construindo um mundo que busca deixar religião e argumentos de autoridade (o famoso “porque está escrito” neste ou naquele livro sagrado) do lado de fora deste debate. Quem irá construir nossa moral somos nós, com base geralmente no objetivo de diminuir a cota de sofrimento no mundo como um todo.
Em outras passagens deste belo livro, ele sugere que em religiões (ou sabedorias) como o budismo, taoísmo e confucionismo, por exemplo, não existe a figura de Deus, de um criador transcendente, e nem mesmo o cultivo da fé. Nestas tradições qualquer coisa parecida com a fé é evitada. Acreditar, esperar pelo melhor, sempre, que ele aconteça, apesar de todas as adversidades, não faz parte dos ensinamentos destas doutrinas. Trata-se mais do cultivo do desapegar-se: não lamentar o passado e não esperar nada do futuro. E, portanto, se não se espera nada do futuro, não há fé. Ou seja, trata-se mesmo de não ter fé, de evitá-la. Nesta perspectiva, ela é considerada um mal a ser evitado.
Também cabe citar o pensamento de Michel Onfray. Em seu “Tratado de ateologia” ele inverte o enunciado. Seria, segundo ele, o contrário: se Deus existisse, tudo seria permitido. Em nome do Bem (de um bem absoluto), na história, geralmente se fez o pior. Religiões e morais, as quais se tomaram por absolutas e únicas, negando violentamente todo e qualquer possibilidade de diferença e diversidade, cometeram as maiores atrocidades da história. Em nome de Deus, de um um bem absoluto e inquestionável, tudo vale, tudo é permitido. Tudo é permitido para defender o nome dele, para defender o que é inquestionavelmente bom.
Sem dúvida, por esse prisma, fica até meio assustador. Conceber a existência de algo absolutamente bom pode justificar qualquer ato ou violência em sua defesa. Por outro lado, se houvesse de fato algo absolutamente bom, será que este algo precisaria de nossa defesa? Se Deus existe e é absolutamente perfeito e bom, ele não carece que o defendamos, que lutemos por ele, ou qualquer coisa similar.
Numa concepção mais aristotélica, Deus, como primeiro motor imóvel de tudo, não seria comovido nem locomovido por nada. A consequência lógica é que seria uma entidade fora do universo (ex-machina), totalmente indiferente, por exemplo, à realidade e sofrimento dos seres vivos. Deus, nesta concepção, “viveria” somente de si mesmo. Todo resto somente teria sentido e existiria em função dele. Todo o resto, imperfeito, tenderia a ele, tenderia à sua perfeição. Tudo se movimentaria na direção de Deus e em amor a ele, o qual, por sua vez, sendo absolutamente perfeito, “viveria” somente de si mesmo.
Este tipo de concepção, ao meu ver, convoca uma espiritualidade mais ativa e alinhada com os princípios modernos. Pois não se trata de esperar por Deus, de pedir sua ajuda, chamá-lo, ou qualquer coisa similar a imaginá-lo como uma entidade pessoal. Deus, neste sentido, não é alguém. É a fonte de tudo, sem corpo, sem individualidade. Está mais para algo do que para alguém. É também próximo do Deus de Spinoza, o qual, por sua vez, muito se assemelha à própria natureza, a totalidade. E assim Comte-Sponville pergunta: e isso não seria então a própria natureza?

Referências:
Comte-Sponville, A. (2007). O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus.  São Paulo: Martins Fontes
Onfray, M. (2007). Tratado de ateologia. São Paulo: Martins Fontes.

Friday, June 03, 2011

Prazer sem esforço pode ser fatal



Obter prazer sem esforço prévio não é natural e pode ser fatal. Este alerta é de certo modo antigo e remonta aos estóicos. Esta grande escola filosófica da Antiguidade valoriza a virtude e o esforço. Para o estoicismo, a felicidade deve ser alcançada pelo esforço, e o prazer deve ser mais uma conquista do que um produto gratuito de nossa rotina.
Esta concepção, contudo, não se restringe aos ensinamentos estóicos. Russell, em seu livro “A conquista da felicidade”, diz que “a passividade física durante a excitação é contrária ao instinto” (p. 62). Skinner faz distinções importantes entre ser agradável e fortalecedor. Ressalta que no mundo desenvolvido ocidental há uma ênfase muito grande em um certo cultivo gratuito de prazeres, os quais estariam desatrelados do fortalecimento de comportamentos importantes tanto para a sobrevivência saudável do indivíduo quanto da espécie humana.
Eduardo Giannetti, em seu livro sobre a felicidade, faz menção a um (segundo ele) “clássico” experimento, no qual ratos obtinham acesso irrestrito, e praticamente sem esforço algum, a uma estimulação direta em seus centros de prazer no cérebro, somente pressionando uma alavanca:
“Toda vez que ele aperta a tal alavanca por meio segundo, um eletrodo implantado no seu hipotálamo lateral solta uma pequena carga de eletricidade naquele ponto. O efeito disso é fazer com que o hipotálamo acione o circuito que libera o neurotransmissor dopamina, assim como ocorre quando o rato se alimenta ou copula. Ao pressionar a alavanca, portanto, o animal estimula diretamente o centro de prazer no seu cérebro, como se estivesse obtendo "comida elétrica" ou "sexo elétrico". A diferença é que agora o seu apetite é insaciável. O prazer da descarga elétrica é tão intenso e gratificante que o rato se desinteressa por tudo o mais, inclusive alimento e sexo, e passa a se autoestimular dia e noite, cerca de 3 mil vezes por hora, até o colapso por esgotamento.” (Giannetti, 2002, p. 156-157).
Neste sentido, não basta realizar desejos. A felicidade não pode ser traduzida em simples realização de desejos. Não basta fruir, ou experimentar o prazer de qualquer modo, gratuita e irrestritamente. Prazer gratuito e irrestrito é enfraquecedor, e pode ser fatal.

Referências: 
Giannetti, E. (2002). Felicidade. São Paulo : Companhia das Letras.
Russell, B. (1930/2001). A conquista da felicidade. Lisboa: Guimarães Editores.
Skinner, B. F. (1987), What is Wrong with Daily Life in the Western World? Em: Upon Further Reflection. Englewood Clifs (New Jersey): Prentice Hall, p.15-31

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