Sunday, May 29, 2011

Sobre a tolerância religiosa (Comte-Sponville)



“Creio em Deus, porque senão seria muito triste”, disse-me um dia uma leitora. Isso, que por certo não é um argumento (“pode ser que a verdade seja triste”, dizia Renan), deve no entanto ser levado em conta. Eu ficaria zangado comigo mesmo se levasse a perder a fé quem dela necessita ou, simplesmente, quem vive melhor graças a ela. E estes são incontáveis. Alguns são admiráveis (reconheçamos que há mais santos entre os crentes do que entre os ateus; isso não prova nada quanto à existência de Deus, mas proíbe que se despreze a religião), a maioria dignos de estima. A fé deles não me incomoda nem um pouco. Por que eu deveria combatê-la? Não faço proselitismo ateu. Procuro simplesmente explicar minha posição, argumentá-la, e mais por amor à filosofia do que por ódio à religião. Há espíritos livres nos dois campos. É a eles que me dirijo. Deixo os outros, crentes ou ateus, às suas certezas." 

(Comte-Sponville, em “O espírito do ateísmo”, p. 19-20)

Saturday, May 14, 2011

Depressão e a perda da capacidade de amar


É conhecida a concepção de Freud, no clássico texto “Luto e melancolia” (1917), a qual relaciona a melancolia (e, de certo modo, a depressão) com a perda da capacidade de amar, entre outros atributos.
Esta consideração é fecunda. Por quê? Porque toca em um conceito muito aclamado, declamado, distorcido, comercializado, banalizado, multifacetado, paradoxal: o conceito de amor. Sem amor não há valor. O primeiro precede o segundo e lhe serve de condição. Só há valor se houver, antes, amor. A vida vale a pena? Para quem a está amando, enquanto está amando, certamente. A morte é uma ausência, negatividade. É um bem, um mal? Mal negativo para quem está gostando, amando sua vida. E bem negativo para o suicida, por exemplo.
Amor e desejo precedem o valor. Você gosta, deseja, porque é bom? Não. Na verdade é bom porque você gosta, deseja. Amor e desejo são anteriores ao valor. O bom é aquilo que é desejável. Onde há desejo, amor, há valor.
No caso do depressivo, como perde sua capacidade de amar? Tendo perdido seus objetos de amor; estando submetido a constantes ameaças e punições e não sendo capaz de se esquivar delas; ou por uma espécie de atrofia: sendo impedido de exercitar o amor ao que se ama.
O mundo do depressivo pode estar mergulhado em perdas ou alguma perda fundamental. Pode estar cercado de ameaças e punições, ou pode simplesmente estar recluso, paralisado, fechado para a vida, para o amor, seja por quais tipos de impedimentos for.

Podcast com comentários:

Friday, May 13, 2011

Existe livre-arbítrio?


Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta,
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda...
Cecília Meireles

A idéia de que existem escolhas absolutamente livres (o livre-arbítrio) me parece ingênua:

“Os homens imaginam ser livres porque têm consciência das suas volições e dos seus desejos, e não pensam, nem em sonho, nas causas pelas quais se dispuseram a desejar e a querer, por não terem o menor conhecimento delas” (Spinoza, citado por Comte-Sponville, 2002, p. 67).

“Embora seja verdadeiro que a democracia se baseia na escolha, é falso que a escolha se torna sem sentido ou impossível se não houver livre-arbítrio. A idéia de que a escolha desapareceria provém de uma noção excessivamente simplista da alternativa ao livre-arbítrio. Se, numa eleição, uma pessoa puder votar de duas formas, o voto que de fato ocorrer dependerá não apenas de sua história a longo prazo (proveniência, educação, familiar, valores), mas também de eventos imediatamente anteriores à eleição. As campanhas eleitorais existem precisamente por esta razão. Posso mudar de lado em função de um bom discurso, sem o qual eu votaria em outro candidato. Para que uma eleição tenha sentido, as pessoas não precisam ser livres; basta apenas que seu comportamento esteja aberto à influência e persuasão (determinantes ambientais de curto prazo)”. (Baum, 1999, p.31)

Somos mais livres do que os animais porque temos um eu, uma consciência que se reconhece como tal. Somos mais livres porque sabemos mais, temos mais informações sobre o mundo e sobre nós mesmos, logo mais poder de escolha. Isto nos torna mais livres, mas não absolutamente livres. Adotar a idéia de que estamos condenados inelutavelmente à liberdade, parece-me uma fascinação provocada pela ilusão que a própria condição de possuir um eu pode despertar, a ilusão de Narciso, que se entusiasma com a própria imagem e em seus labirintos se perde.

Nossas escolhas são sempre condicionadas a nossos contextos e limitações. A concepção de que existem escolhas absolutamente livres é uma ilusão de nosso próprio narcisismo.

É possível, por outro lado, nos sentirmos mais ou menos livres, conforme o contexto no qual estamos inseridos. Nossa ação no mundo sempre tem alguma função. O que não tem função tende a se extinguir. Agimos seja para obter algo que nos apraz, seja para nos afastarmos do que nos é aversivo.

Deste modo, há situações que produzem sensações de maior liberdade: quando agimos em função do que nos apraz. E há aquelas situações em que nos sentimos menos livres: quando agimos por dever, por medo, em função de ameaças; quando agimos para evitar algum mal.

Agir em função do que nos apraz tem nome: amor. Desse modo estamos agindo com amor, por amor. Onde há somente dever, não há amor. O que fazemos por dever, não fazemos por amor.

Comte-Sponville (2002) ajuda a finalizar:
“Ninguém nasce livre, torna-se livre. Pelo menos é o que penso, e que, por isso, a liberdade nunca é absoluta, nem infinita, nem definitiva: que somos mais ou menos livres e que se trata, é claro, de o sermos o mais possível.” (p. 74)

Referências
Baum, W.M. (1999). Compreender o Behaviorismo. Porto Alegre: Artmed.
Comte-Sponville, A. (2002). Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes.