A gratidão , antes  de ser  um  consolo  ou  um  sentimento  de dívida , pode ser  um  ato . O ato  simples  de usufruir  do que  se tem e do que  se pode. Ser  grato , em  seu  sentido  mais  virtuoso , é dar  valor  ao que  se tem. E para  isso  é preciso  ter  olhos  para  o que  já  existe e é capaz  de produzir  prazer .
Há quem  tenha sido condicionado a se sentir  feliz  somente  por  comparação com  os outros . Ou  seja, ser  feliz  é ser  ou  ter  mais  que  o outro , é ostentar  superioridade . É uma felicidade  social , de coluna  social . Para  quem  foi assim  condicionado, fica mesmo  muito  difícil  ser  feliz  sozinho  (no seu  bom  sentido ), no seu  cantinho, sem  se preocupar  demais  com  os outros . Segundo  Russell:
“O homem  sensato  não  deixa  de sentir  prazer  com  o que  tem pelo  fato  de alguém  ter  mais  ou  melhor . A inveja , na realidade , é uma forma  de vício , em  parte  moral , em  parte  intelectual , que  consiste em  não  ver  as coisas  em  si  mesmas, mas  somente  em  relação  com  outras. (...) Quem  deseja  a glória , poderá invejar  Napoleão. Mas  Napoleão invejou César. César invejava Alexandre e Alexandre, provavelmente, invejava Hércules , que  nunca  existiu. Não  se pode, por  conseguinte , combater  a inveja  só  por  meio  da conquista  da glória , pois  haverá sempre , na história  ou  na lenda , algum  personagem  cujos  feitos  tenham sido mais  gloriosos . Pode-se combatê-la, sim , pelo  gozo  dos prazeres  que  se nos  oferecem, pelo  trabalho  que  tivermos de realizar  e evitando comparações com  aqueles  que  imaginamos, talvez  sem  razão , mais  ditosos  do que  nós .” (2001, p. 84)
A melhor  forma  de se fazer  isso  é o usufruto  íntimo  e discreto  do que  se tem à disposição , e não  do que  se teria. É saber  gozar  em  nossa  própria  simplicidade  e intimidade , em  um  possível  mundo  não  somente  feito  e construído  como  uma vitrine . Explico melhor : é olhar  menos  para  a vida  ou  o sucesso  dos outros . É poder  habitar  um  mundo  menos  permeado por  inveja . Um  mundo  onde  a privacidade  seja um  elemento  chave  para  o desenvolvimento  pessoal  e o prazer . A sugestão  é de Sade: o quarto  (a alcova ) é o espaço  privilegiado para  o crime . É na privacidade  que  a possibilidade de prazer  e gozo  pode ser  diversa  e rica . 
A gratidão , neste sentido , é as vezes  até  meio  anti-social . Por  que  é o prazer  pelo  que  é simples  e somente  nosso . Somente  nosso  porque  ninguém  mais  dá valor . Ou  melhor , ninguém  mais  sabe o valor  que  aquilo  tem. Não  é somente  uma virtude  da memória , mas  também  da intimidade .
A intimidade , curtir  nosso  cantinho, sem  olhar  para  os lados , é um  caminho  suave  de felicidade . É tocar  nosso  barquinho num ponto  isolado e esquecido do oceano  e poder , de preferência , compartilhar  isso  com  alguém , ou  seja: amando. Gratidão , mas  gratidão  compartilhada, como  tudo  o que  é do amor . Poder  dividir  esta alegria  a mais , que  é a gratidão , é o próprio  ato  de agradecer . E isto  também  é uma das formas  do amor . Para  Comte-Sponville:
“A gratidão  é dom , a gratidão  é partilha, a gratidão  é amor : é uma alegria  que  acompanha a idéia  de sua  causa , como  diria Spinoza, quando  essa causa  é a generosidade  do outro , ou  sua  coragem , ou  seu  amor . Alegria  retribuída: amor  retribuído.” (2000, p. 147)
Sendo que  até  aqui  somente  falei de um  tipo  de gratidão : a gratidão  para  com  a vida . A gratidão  para  com  os outros  seria o segundo  tipo .
O segundo  caso  diz respeito  mais  precisamente  ao reconhecimento  de que  não  somos sujeitos  absolutos  de nossa  própria  condição . Ser  grato  é reconhecer  que  outras pessoas  também  participaram na produção  de nossa  aventurança. Trata-se de uma certa  humildade  que  obriga a reconhecer  o outro  como  parte  de nossa  alegria . É poder  dedicar , compartilhar  a graça  recebida. Reconhecer  o que  nos  foi dado . Ainda , segundo  Comte-Sponville:
“Agradecer  é dar ; ser  grato  é dividir . Esse  prazer  que  devo a você  não  é apenas  para  mim . Essa alegria  é a nossa . Essa felicidade  é a nossa . O egoísta pode regozijar-se em  receber .  Mas seu  regozijo  é seu  bem , que  ele  guarda  só  para  si . Ou , se o mostra , é mais  para  fazer  invejosos  do que  felizes : ele  exibe seu  prazer , mas  é o prazer  dele. Já  esqueceu que  outros  têm algo  a ver  com  isso . Que  importância  têm os outros ? Por  isso  o egoísta é ingrato : não  porque  não  goste de receber , mas  porque  não  gosta  de reconhecer  o que  deve a outrem , e a gratidão  é esse  reconhecimento , porque  não  gosta  de retribuir , e a gratidão , de fato , retribui com  o agradecimento, porque  não  gosta  de partilhar , porque  não  gosta  de dar . (...) O egoísta é incapaz  disso, pois  só  conhece suas  próprias satisfações , sua  própria  felicidade , pelas quais  zela  como  um  avaro  por  seu  cofre . A ingratidão  não  é incapacidade  de receber , mas  incapacidade  de retribuir  – sob  a forma  de alegria , sob  a forma  de amor  – um  pouco  da alegria  recebida ou  sentida .” (2000, p.146)
E um  erro  muito  comum , neste caso , é esperar  gratidão . É fazer  algo  pelo  outro  já , de antemão , esperando que  no futuro  haja reconhecimento . Fazer , de graça , por  amor , esperando gratidão  ou  retribuição, é tolice . Neste sentido , deve-se fazer  sem  esperar  nada  em  troca . Isto  simplesmente  porque  a gratidão  do outro  não  depende de nós .
Há graças  ou  “dívidas ” que  são , por  definição , impagáveis . A dívida  que  temos para  com  nossos  pais , por  exemplo . Principalmente  se a graça  é considerada grande  e o papel  deles fundamental . Ou  se os sacrifícios  dos pais , como  muito  comumente ocorre, foram notáveis . Entretanto , se eles  amam os filhos , basta  a ar  da graça  destes. Não  tem preço  e não  se paga . 
Comte-Sponville, A. (2000). Pequeno  tratado  das grandes  virtudes . São  Paulo: Martins Fontes .
Comte-Sponville, A. (2004). Dicionário  Filosófico. São  Paulo: Martins Fontes .
Russell, B. (2001). A conquista  da felicidade . Lisboa: Guimarães Editores .
 
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