A fidelidade  é um  tema  espinhoso , principalmente  se adentra , em  discussões  pessoais , os seus  possíveis  papéis na vida  amorosa .  Geralmente  se espera  que  um  texto  sobre  a fidelidade  verse somente  sobre  as relações  amorosas, conjugais. A questão , porém , é extensa . Não  diz respeito  somente  às relações  amorosas ou  afetivas. É bem  anterior . Está na base  de diversas relações  humanas. 
A fidelidade  possui íntima  relação  com  outros  temas , caros  a diversas áreas  do conhecimento : verdade , moral , igualdade , compromisso , promessa , privacidade , caráter , memória  e honestidade , por  exemplo . Toca  nas diferenças  entre  dizer  e fazer  e em  questões  como  coerência , lógica  e empatia .
Começarei então  pela  questão  do compromisso  e da promessa . A fidelidade , humana  e não  a canina , é antes  de tudo  fruto  de uma promessa . Apesar  de sermos, muitas vezes , fiéis como  cães . O que  está mais  ligado à filiação  e à irmandade , à fidelidade  que  nos  mantém unidos à nossa  família . Pois  ninguém  promete, explicitamente, ou  legalmente , que  será fiel  a pai , mãe  ou  irmão . É simplesmente  o tabu  da infidelidade  na família , incrustado na história  da formação  da humanidade , que  nos  mantém unidos aos nossos  consangüíneos  mais  próximos . Ser  infiel  com  membros  da família  é um  tabu . A história  amorosa , de trocas  dentro  de uma família , da própria  formação  do sujeito , também  impede, de certo  modo , que  isso  ocorra. 
A fidelidade  provém geralmente  uma promessa , explícita  ou  implícita , a qual  não  implica necessariamente no ato  de ser  fiel . Ela  pode ou  não  implicar  em  comportamentos  fiéis. Assim  é, muitas vezes , um  compromisso , o qual  pode ser  exercido com  amor  e espontaneidade  ou  como  um  fardo . 
Somos fiéis ao que  nos  pertence , mas  somos também  fiéis, em  alguns  casos , ao que  não  nos  pertence . Isto  ocorre em  estados  de alienação  ou  encantamento , ilusão . A paixão  é um  deles. Muitos , quando  estão apaixonados, são  capazes  de não  exigir  quase  qualquer  tipo  de fidelidade . Algo , porém , precisa  continuar  alimentando  a paixão : alguma espécie  de atenção  ou  afeição , sexo , promessas , um  vínculo  qualquer , ou  esta mesma  ilusão  de alguém  insanamente  apaixonado.
A fidelidade , em  muitos  casos , é admirável , heróica  e bela , pois  é uma demonstração  de amor  que  desafia  as adversidades . Como  se o amor  pudesse resistir  a diversas intempéries  da vida . É uma virtude  de resistência . Ser  fiel  é resistir , apesar  da corrosão  do tempo  e das mudanças ao redor . São  belas e emocionantes  as demonstrações  de amor  e fidelidade , que  mantêm a união , o carinho  e o cuidado , mesmo  nos  momentos  mais  difíceis, os quais  são  geralmente  relacionados às doenças  e toda  espécie  de miséria  que  pode nos  acometer . Fidelidade : virtude  à prova  de miséria  e dor . Virtude , em  muitos  casos , mais  de doação  do que  de troca . 
Restringi-la ao âmbito  sexual , como  é muito  comum , é pervertê-la, reduzi-la. As promessas  de exclusividade  sexual , restrita aos casais , são  somente  um  componente  da fidelidade  como  um  todo . O mesmo  casal  que  é fiel  sexualmente  pode não  o ser  em  termos  afetivos . Expor  um  segredo , algo  íntimo , com  o intuito  de agredir  o outro  é também  prova  de infidelidade . É o caso  de pessoas  que  não  traem, mas  que  tratam muito  mal  seus  parceiros , expondo sua  intimidade  a situações  vexatórias e humilhantes. Muitas vezes  pelas costas . E somente  com  o objetivo  de agredir , diminuir , ofender . Tramar , neste caso , seja lá  o que  for, contra  alguém , é infidelidade .
Os casais , os amigos , quem  se ama , combinam o que  deve ficar  “entre  nós ” ou  não . Saiu deste âmbito  e, principalmente , se foi banalizado ou  ridicularizado fora  da relação , é traição . Cansei de ver  casais  que  falam mal  e com  maldade , um  do outro , para  pessoas  de fora  da relação , por  motivos  mesquinhos  e com  o objetivo  de prejudicar  o parceiro . Há traição  pior ?
“É um  palhaço , um  idiota . Uma hora  ele  toma  um  pé  na bunda  quando  menos  esperar ”.
Ouvi esse  tipo  de comentário , de diversas formas , mais  ou  menos  sutis, mais  ou  menos  agressivas. Muitas vezes  nem  sequer  havia infidelidade  sexual . E não  tive outra  reação  a não  ser  a de ficar  chocado e querer  me  afastar  desse tipo  de pessoa . Não  era  também  raro  o parceiro  (ou  parceira ) chegar  e ser  tratado  com  bastante  carinho , o que  tornava a falsidade  e a traição  ainda  mais  evidente .
Neste sentido , este  último  é um  conceito  defeituoso, já  que  por  amor  incondicional  podemos compreender  um  amor  infinito . Como  continuar  acompanhando, servindo e amando quem  nos  traiu da forma  mais  cruel  possível ? O que  volta  a retomar  a idéia  de fidelidade  como  uma virtude  de troca , de reciprocidade : somos fiéis a quem  nos  é fiel , a quem  cumpre o que  promete. De reciprocidade , mas  não  necessariamente de igualdade . Porque  os papéis podem ser  diferentes : patrão  e empregado , por  exemplo , cumprem compromissos  diferentes . 
“Toda  virtude  se opõe a dois  excessos , lembraria um  aristotélico : a versatilidade é um  e a obstinação  é outro , e a fidelidade  rejeita ambos  igualmente .” (p. 26)
Sendo que  este  autor  utiliza dois  termos  (versatilidade e obstinação ) para  os quais  os senso  comum  costuma utilizar  outros : volubilidade e teimosia . Ser  fiel , então , é não  ser  volúvel , obviamente, nem  cabeça-dura. O fanatismo  é o lado  vicioso  da fidelidade .
“A fidelidade  não  desculpa  tudo : ser  fiel  ao pior  é pior  do que  renegá-lo. Os SS juravam fidelidade  a Hitler; essa fidelidade  no crime  era  criminosa . Fidelidade  ao mal  é má fidelidade .”(p. 26)
A fidelidade  ao mal  é um  mal  a mais . Fidelidade  aos detalhes : obsessão ; às pequenas  coisas : mesquinhez; ao ódio : ressentimento. Fidelidade  cega  à si  mesmo : narcisismo ; às aparências : vaidade , orgulho . E assim  poderíamos, aos poucos , descobrir  uma extensa  seqüência  de fidelidades  enquanto  vício .
“Como  eu  poderia  jurar  que  sempre  te  amarei ou  que  não  amarei outra  pessoa ? Quem  pode jurar  seus  sentimentos ? E para  que , quando  não  há mais  amor , manter  a ficção , os encargos  ou  as exigências  do amor ? Mas  isso  não  é motivo  para  renegar  ou  não  reconhecer  o que  houve. Por  que  precisaríamos, para  amar  o presente , trair  o passado ? Eu  juro  não  que  sempre  te  amarei, mas  que  sempre  permanecerei fiel  a esse  amor  que  vivemos. 
O amor  infiel  não  é o amor  livre : é o amor  esquecidiço , o amor  renegado, o amor  que  esquece ou  detesta o que  amou e que , portanto , se esquece ou  se detesta. Mas  será isso  ainda  amor ? 
Ama-me enquanto  desejares , meu  amor ; mas  não  nos  esqueça”. (p. 35-36)
Neste sentido , eu  diria que  é possível  conceber  dois  tipos  de fidelidade : uma que  é prospectiva (votada ao futuro ) e outra  que  é retrospectiva  (votada ao passado ). A primeira  é promessa , acordo . Demanda  sensatez  para  criá-la, e esforço , vontade , para  mantê-la. A segunda  é a memória  do que  se viveu, do que  se sentiu. Denota saúde , maturidade . 
“O que , efetivamente , caracteriza um  homem  de caráter  é saber  designar  fins  que  procura  alcançar  com  um  tal  empenho  que  consideraria perdida a sua  individualidade  se tivesse de renunciar  a eles . Com  a substancialidade do fim , esta constância  constitui a base  daquilo a que  se chama  um  caráter .” (p. 44).
Na seqüência , o próximo  texto  versará mais  precisamente  sobre  a fidelidade  entre  casais  e sua  dinâmica . Para  tanto , serão  levados  em  conta  temas  tais  como  as diferenças  de gênero  e a igualdade .
Comte-Sponville, A. (2000). Pequeno tratado grandes virtudes São Fontes 
Hegel, G.W.F. (1993). Estética Editores 
 
2 comments:
Professor, admiro seus escritos!
De fato a fidelidade "é resistir, apesar da corroção do tempo e das mudanças em redor".Esse seu comentário acima sobre fidelidade foi o que mais se encaixou naquilo que idealizo como fidelidade.Inclusive, os escritos bíblicos revelam que fidelidade é um dos atributos de Deus.Possivelmente nós, seres humanos, não somos fiéis em todo momento ou tb não somos fiéis em meio as várias facetas que cumprimos ao "longo" dos nossos curtos dias de vida terrena.
Parabéns pelo texto!
Abraços
Oi Adriano!
Aproveito o espaço de seu interessante blog pra dizer que o "descobri" através do site RedePsi, ao ler seu texto "Pequenas digressões Psicopatológicas (A auto-mutilação)".
Depois de um longo tempo começo a procurar ajuda e, pela forma como abordou o tema, acredito que você poderia ser alguém com quem eu seria capaz de conversar... claro que seu excelente gosto literário também é um bom atrativo!
Enfim, com embaraço e um certo receio deixo aqui meu email, dandy.littlething@gmail.com, na esperança de receber uma resposta amigável. Abraço.
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