Tuesday, September 12, 2006

“Faça sinal de paz pra extraterrestre...”

O prédio da moradia da pós-graduação da UnB é um bloco bem simpático, localizado na Colina, o setor de habitações de funcionários e professores. É um local bem arborizado, pacato e agradável. Para quem vivia de bolsa de mestrado como eu, morar na Colina era um luxo completo. A casa do estudante possui acomodações muito dignas. É um bloco de três andares com um estacionamento pavimentado com brita à sua frente, de modo que é possível ouvir, por exemplo, os passos de quem chega pela frente do prédio, vindo da pista.
Eram mais ou menos duas horas da manhã. Marina (minha namorada à época) e eu estávamos na sala, quando ouvimos alguns gritos e gemidos vindos do lado de da pista, de uma escuridão sem nome, de locais ermos, sobre os quais sempre deveríamos ter cuidado redobrado se de viéssemos. Eram gemidos sofridos, agonizantes e desesperadores.
Você ouviu isso, Marina?”
Sim. Depressa, vamos abrir a janela para ver o que é!”
Nada. Ninguém.
Nossa, parecia alguém morrendo, sendo atacado.”
Ouvimos passos na brita, por detrás do prédio. Não sabíamos ao certo do que se tratava. Alguém andava a passos largos e gemia como um bicho, em direção ao prédio. Estávamos no terceiro andar e podíamos perceber que o bicho subia as escadas e estava cada vez mais próximo. De nosso apartamento, no fim do corredor, podíamos ver o início das escadas e o pátio aberto para o qual elas davam acesso. A coisa então irrompeu em nosso andar. Saiu das escadas e adentrou o pátio, de braços abertos, imitando um avião, o qual decolaria dali, do terceiro andar. Não adentrou o corredor dos apartamentos. Passou reto, continuando no pátio, era sua plataforma de decolagem. Deu a volta e finalmente estav em nosso corredor. Vinha em nossa direção, gemendo. Um avião que gemia com um bicho.
Mas não era um bicho. Era na verdade uma bicha doida, completamente descontrolada, fora de si. Era Reginaldo parindo o mundo todo de suas loucuras às duas horas da manhã para que toda a moradia ouvisse.
Marina, prepare-se. É o Reginaldo. E parece quemuito doido. Faça sinal de paz pra extraterrestre, é isso o que nos resta.”
Não sabíamos do que ele seria capaz. Estava completamente descontrolado, insano. Eu e ela ficamos estáticos, com um singelo sorriso de boas-vindas no rosto, com o braço estendido à frente e a palma da mão voltada para Reginaldo, como uma espécie de sinal de “pare”, o qual na verdade era um gesto de paz para extraterrestres que eu havia visto numa revista sobre UFOs em minha adolescência. Havia um gordinho bicha, nosso vizinho de infância, que adorava essas estórias de disco voadores. Dizia ter visto vários deles e assinava uma inútil e fascinante revista sobre o tema. Foi que eu vi este recomendado sinal, do qual nunca mais me esqueci. Sabia que um dia seria muito útil para mim em algum futuro próximo, pois nunca somos capazes de prever o dia em que faremos contato com seres de outro planeta.
Ficamos , imóveis, com um sorriso suave no rosto, tentando nos comunicar, e transmitir aquele gesto de paz para Reginaldo. Ele não tinha palavras, somente uivos. Bem diante de nós, contorcia o rosto, o corpo e uivava alto. Estava tomado por algum outro ser. Eu poucas vezes na vida havia visto alguém com as feições e expressões corporais tão distorcidas. Era um bicho grande, gordo, babando, suado e exalando álcool e bicha-louquisse por todos os poros do corpo.
Não disse coisa alguma. Fitava-nos e uivava, retorcendo-se e com o olhar doentio. Foram segundos tensos, em que o relógio para. Uivou mais um pouco, agora como quem tinha orgasmos. De repente tomou passo e entrou, cambaleando. Foi para o quarto, batendo a porta. Da sala, ouvíamos sua movimentação ruidosa dentro. Eram barulhos de quem tropeçava e topava com partes do corpo nas paredes: som oco de osso a bater no concreto.
poucos dias nós dois havíamos nos desentendido de forma muito desagradável e agressiva. Reginaldo era de convivência absurdamente difícil e sempre que podia tentava impor seus padrões e neuroses aos outros. O clima entre nós estava péssimo. Não havia notícia naquela moradia de alguém que houvesse conseguido se relacionar bem com Reginaldo. Eu não estava entendendo nada. Sentia-me como em um presídio. Com Reginaldo os espaços ficavam muito reduzidos, pois ele ocupava todos os possíveis. Conviver com ele era muito opressivo. Para se ter uma idéia, tive várias vezes o ímpeto inconcluso de quebrar-lhe uma cadeira na cabeça e mandá-lo para o pronto-socorro. Era meio psicopata e despertava em nós impulsos violentos de auto-proteção. Nunca esse tipo de ato havia passado pela minha cabeça. Mas com Reginaldo isto era normal.
Edinho, nosso famoso Edinho Miranda Di Caprio, o goiano baixinho e barrigudo que era uma comédia absurda de ingenuidade, disse que havia dormido várias vezes com uma faca debaixo do colchão, na época em que dividia quarto com Reginaldo, e ninguém entendia. Agora que eu também dividia quarto com a louca, sabia do que ele estava falando.
Depois de tropeçar em tudo e bater muita cabeça dentro do quarto, saiu para a sala. Parou diante de mim e Marina:
Eu queria que vocês soubessem de uma coisa. Eu gosto muito de vocês dois. Nós nos desentendemos ontem, Adriano. Não importa o que tenha acontecido. Quero que fique claro que gosto e respeito muito você e Marina.”
Mas aquilo não combinava com seu olhar. Tinha uma expressão profundamente doente.
Foi para o banheiro. Bateu mais cabeça por alguns minutos e voltou, completamente nu. Carregava a calça nas mãos. Antes de adentrar o quarto, fez um aceno de cabeça, em uma espécie de boa noite.
Naquela noite não tive dúvidas. Dormi com uma faca debaixo de meu colchão.

Tuesday, September 05, 2006

Alma de quintal alegre e imenso

(Antologia do Prêmio Sesc de Poesia, 2006)

Em meu deserto de segredo e silêncio,
na esquina de minha miopia,
no ponto absurdo de meu corpo
que se alimenta de não penso.
Nos planos de um coração perdido e quase morto,
de uma alma de quintal alegre e imenso.

No tempo que devora homens lá fora,
na vida que planto todo dia,
no tanto que já fui embora,
no reino de tudo que espera,
de um coração mastigado de hora em hora,
ou da colheita do que já era
e dos mundos em que me perdi.
Hoje sou milhões de pássaros cantando
Em seu sorriso...
amanheci