Para que entendam sobre o que estou falando, colocarei os fatos em ordem invertida. Falarei primeiramente da situação envolvendo esse colega e depois relato minha própria experiência.
Há poucos dias recebemos uma notícia muito triste. Um de nossos pacientes, com apenas 18 ou 19 anos de idade, t*rou a própri4 vid4. Não sei exatamente como essa notícia chegou até o CAPS, mas foi transmitida durante uma intervisão, que é nossa reunião diária, feita duas vezes ao dia, no final de cada período. Ou seja: no final da manhã e da tarde, para discutir os casos mais difíceis de cada período de trabalho.
Quando deram a notícia eu estava de frente a uma colega que vinha acompanhando o paciente, e eu não havia percebido, mas havia alguém atrás de mim, fora de meu campo de visão, que também o havia acompanhando. Como ambos são pessoas que estão atuando mais recentemente em saúde mental, alguém comentou:
- Compreendo vocês estarem se sentindo emocionados, mas lhes digo que isso um dia ocorreria, que é algo praticamente inevitável, porque trabalhamos com uma quantidade muito grande de pessoas e, mais cedo ou mais tarde, algo tão triste assim tende a ocorrer...
Eu olhava para frente e via somente uma das pessoas e ela não estava ainda nitidamente emocionada. Mas a pessoa que mais havia se emocionado estava atrás de mim e só me dei conta quando ouvi o próprio choro.
Sinto que, por ser um pouco mais raro, o choro masculino tende, em algumas situações, a despertar mais reações emocionais dos outros do que o choro feminino, que costuma ser mais frequente. E foi exatamente isso que ocorreu. Todos ficamos envolvidos pelo choro do colega. Era a primeira vez que ele passava por isso, talvez a primeira vez que testemunhava a morte de alguém tão próximo e em tais circunstâncias.
Boa parte dos presentes passaram então a se lembrar das situações em que vivenciaram isso pela primeira vez, o contato com a finitude de alguém que intencionalmente a provocou. No meu caso a primeira experiência mais intensa e profunda foi a morte de meu irmão mais velho, Edu, que inclusive, 14 anos depois, se transformou em relato de caso, publicado em um periódico científico dos Estados Unidos.
O fato ocorrido comigo há alguns anos, dentro do CAPS, tem aparentemente alguma relação com o passado mais distante, com a morte de meu irmão. Não me lembro mais se era um atendimento agendado ou de urgência.
O paciente tinha 20 e poucos anos de idade. Era jovem, como meu irmão, que faleceu aos 28 anos. Entrou no consultório bastante ansioso e queria imediatamente uma consulta médica, que naquele dia era algo provavelmente impossível de se obter ali no CAPS ou bem improvável. Porque a minha lembrança é a de que eu não seria capaz de fazer com que ele chegasse até um médico ali dentro.
- Eu não quero conversar com você. Não quero conversar com psicólogo. Eu preciso de um médico agora. Eu estou faltando no trabalho e eu preciso de atestado. Eu não estou suportando o peso da vida e eu preciso imediatamente de um médico.
- Não há médicos hoje aqui no CAPS...
- Eu não quero saber o que você tem ou não a me dizer. Eu preciso de um médico agora! Senão eu vou acabar com a minha vida!
Ele estava em um movimento muito intenso de ameaças e, por mais que eu tentasse me manifestar da forma mais acolhedora possível, ou com todas as técnicas possíveis de validação e acolhimento, nada parecia ser suficiente. Ele estava praticamente me tomando de assalto, para chegar até um médico. O problema é que eu realmente não era capaz de conseguir o que ele queria.
- Eu tenho certeza de que seu caso é urgente e que você precisa imediatamente de ajuda. Só não conseguirei um médico imediatamente, aqui dentro do CAPS. Mas vamos fazer o possível...
- Eu não quero saber. Você está me enrolando e eu vou embora daqui agora! E vou acab4r com a minha vid4!
O diálogo não foi exatamente esse. Mas a dificuldade foi escalando mais ou menos assim. E eu fui perdendo o controle da situação. Os segundos, os minutos se passavam e esse paciente se exaltava cada vez mais, fazendo um tipo de ameaça, em um determinado contexto, com o qual eu pouco havia lidado em minha vida.
Ele literalmente foi capaz de me tomar de assalto. Conseguiu me surpreender, me acuar e me assustar. Em uma situação mais comum, quando usamos a palavra assalto, nos referimos às ruas, ao contexto no qual o outro nos ameaça de modo muito intenso e surpreendente, para que rapidamente sucumbamos e obedeçamos. Era isso o que eu sentia e o revólv*r ele apont4va para sua própria cabeç4. Eu havia chegado ao ponto de pedir para que ele não saísse da sala, para que não fosse embora.
- Por favor, não vá embora. Por favor, não faça isso... Não vá embora. Fique aqui por favor. Estou aqui para ouvir tudo o que você tem a dizer, sobre tudo que você vem passando e sentindo e que está acontecendo em sua vida...
Nada funcionava e ele saiu, correndo, do consultório. Evadiu do CAPS e eu não consegui acompanhá-lo. Passou correndo pela recepção e eu fui caminhando, o mais rápido que pude, logo atrás. Quando me perguntaram:
- O que está acontecendo, Adriano?
- Ele saiu correndo e disse que vai se mat4r agora, que vai se jogar na frente de um carro na avenida... - respondi, com sensação de desfalecimento e já com lágrimas nos olhos.
Até hoje não sei o que ocorreu comigo. Perdi as forças. Eu mal conseguia falar. Era uma sensação de perda de energia, com desmoronamento e choro. Sim, fui golpeado e desabei. As falas e o comportamento dele conseguiram, em poucos minutos, me destruir. Perdi a força das pernas, das palavras e o rumo da sessão, do atendimento e do dever de prestar uma assistência de modo sólido e eficaz.
Por sorte quem estava na recepção percebeu, mesmo sem compreender, que eu estava em estado de desfalecimento, e que precisava agir urgentemente no sentido de tentar conter aquele paciente que já estava nas ruas e talvez em situação de perigo real. Foram correndo atrás dele, conseguiram localizá-lo, acalmá-lo e fizeram com que ele retornasse ao CAPS.
Lembro-me somente que alguém me acolheu. Alguém percebeu que eu também precisava ser acolhido. Não sei se me trouxeram um copo d'água. Mas na minha lembrança é como se tivessem trazido. Pediram para que eu me sentasse, para que eu ficasse tranquilo, para que eu respirasse e me acalmasse. E eu só fazia chorar.
Me colocaram em uma outra sala, mais reservada, na qual não havia outras pessoas e eu me lembro que fiquei ali naquela sala, sozinho, durante pelo menos uns 20 ou 30 minutos, chorando, bastante. Não choro com facilidade e tenho olhos secos. Tenho poucas lágrimas. As lágrimas não saem de meus olhos com facilidade e isso é o completo oposto do que experienciei durante toda a minha infância e início de minha adolescência, quando as lágrimas eram fartas e a facilidade para chorar era algo muito presente e que me incomodava bastante, dado o contexto machista em que fui criado. Eu era uma criança sensível, que chorava com facilidade e chorar era algo extremamente humilhante. Então, durante boa parte de minha infância, convivi com esse drama e a luta hercúlea e geralmente inútil para conter o choro e as lágrimas.
Por sorte, já há muitos anos não tenho mais medo de chorar, embora não tenha aquela facilidade de outrora. E eu estava ali, naquela sala, sozinho, chorando convulsivamente, sem saber direito por quê. As lágrimas vinham aos borbotões. Eu não entendia o que estava acontecendo. A impressão que tenho, talvez distorcida por um contexto completamente diferente, é que chorei até mesmo mais do que em 1998, quando meu irmão faleceu.
Se eu pudesse arriscar alguma hipótese é a de que aquele choro foi o resultado do acúmulo de tensões diárias dentro do próprio CAPS, somado às ressonâncias que teve com a minha própria experiência de vida e de perda de meu irmão.
Há mais de 5 anos vivemos uma rotina muito estressante no CAPS, de demanda extrapolada, que às vezes inclusive nos toma de assalto, com um ou outro paciente explodindo de modo violento. Como aquele sujeito desconhecido, que nunca havíamos visto antes, que chegou de repente, querendo imediatamente um médico, e no final acabou arremessando alguns pedaços grandes de cascalho na porta de vidro, espatifando uma das suas laterais, com aquela quantidade grande de pacientes correndo, fugindo, tentando se abrigar, pulando janelas, se escondendo dentro de banheiros, desesperados, chorando. Ou qualquer outro paciente que se comporte de modo parecido e faça com que todos se sintam desprotegidos e ameaçados.
E a pressão constante para serem atendidos urgentemente, para furarem filas e obtenham, na frente de outras pessoas, suas consultas, seus relatórios, seus atestados e seus benefícios. Mesmo sendo acolhidos da forma mais gentil e humanizada possível. Mesmo todos nós sabendo que o desespero da população é legítimo, dadas as condições precárias de subfinanciamento do SUS e da saúde mental.
É toda uma carga de estresse que vai se acumulando diariamente. Porque todos os dias é sempre a mesma coisa:
"Eu quero meu médico, imediatamente! Meu médico tem que ser um psiquiatra. Eu quero me aposentar, me afastar, encostar. Eu não quero participar das atividades do CAPS. Eu quero somente médico. Eu preciso do meu benefício".
E nossas respostas, na medida do possível:
"Compreendo seu desespero, sua revolta, sua indignação, mas infelizmente não há médico algum aqui hoje na unidade. [ou] Mas infelizmente seu caso não é elegível para acompanhamento em CAPS porque, por lei, os CAPS estão destinados somente para casos severos, persistentes e instáveis. Mas você terá seu acompanhamento na UBS mais próxima da sua casa."
"Eu não quero saber. Lá não tem psiquiatra. Eu tenho direito de ser acompanhado pelo CAPS."
"Aqui trabalhamos prioritariamente com reabilitação psicossocial e isso não envolve necessariamente a figura do médico, fora o fato de que a fila de espera para atendimentos médicos aqui tem mais de 70 pessoas, com pessoas que já estão esperando há um ano e meio. E está bem claro que você não ficará desassistido. Será perfeitamente atendido por médicos da atenção primária, amplamente capacitados para acompanhar seu caso e supervisionados pelo CAPS."
"Eu não quero saber..."
É uma queda de braço árdua e diária. Assim como qualquer paciente ou pessoa que em algum momento irá desabar, nesse dia também desabei. Aquele choro intenso, por sorte, teve a função de fazer com que eu me sentisse depois mais leve, expurgado. Foi uma ação automática e necessária de meu organismo, de colocar para fora e me livrar um pouco daquele peso. Foi uma espécie de tentativa de cura, que eu não lamento ou me culpo por ter ocorrido, como era comum em minha infância e início da adolescência.