Sunday, June 25, 2023

Dever de casa com TV

Observo minha filha fazer seus deveres de casa e me lembro de como era isso em minha infância. Estudávamos à tarde. Entrávamos às 13 e saíamos às 17 horas. A escola, pública, ficava a 300 metros de minha casa. Chamava-se Escola Estadual de Primeiro Grau João Augusto de Mello e nós, estudantes, a apelidamos de Jamel (marca de cachaça). Morávamos no Jardel (Jardim Independência, em Ribeirão Preto) e estudávamos no Jamel.

Às 17:15 já estávamos em casa e, sem enrolação, sentávamos para fazer a tarefa (o dever de casa). A mesa de jantar era de frente para a televisão, porque a sala e a copa eram somente um único ambiente. Fazíamos o dever com a TV ligada, e assim o era até o fim da novela das 8, que começava depois do Jornal Nacional, mais precisamente às 8:30. 

Mas a programação, por volta das 17 horas, começava na Tv Cultura, com Daniel Azulay, com seus desenhos e histórias, ou na Record, com o masoquista do Pinóquio japonês. Depois, junto com a tarefa de casa, engatávamos as novelas das 6, das 7, ou algum seriado na Record, como Chips ou congêneres, com pausa para jantar, mas sem jamais tirar o olho da televisão. Um olho na TV e outro na tarefa. Um olho no jantar e outro na TV. 

Desse modo os deveres de casa nunca eram um fardo. Sempre em grupo, sempre junto com meus irmãos e minha mãe por perto, e sempre com a televisão a nos embalar. Era leve e divertido.

O Jornal Nacional por vezes funcionava como uma pausa, de 30 minutos, na qual íamos para o quarto, fechávamos a porta, deitávamos de bruços na cama e estudávamos, de véspera, em voz alta, para alguma prova.

E durante um ano e meio ou mais, por volta dos 9 anos de idade, eu e Edu (meu irmão mais velho) acordávamos às 6:40, rapidamente nos vestíamos, tomávamos café (pão com margarina e leite com café) e íamos os dois, de moto, com meu pai, para o trabalho. Sim, os três na mesma Honda Turuna 125 cilindradas, sem capacete, num percurso de 4 ou 5 km até o trabalho de meu pai. Eu e Edu exercíamos a função de office-boys.

Entrávamos às 7:15 no trampo. Saímos às 11:15, chegávamos em casa às 11:30, almoçávamos e íamos para a escola, para recomeçar todo o ciclo. 

Meu pai, antes de voltar ao trabalho, depois do almoço, ainda tirava uma soneca de uns 20 minutos. 

Mas a rotina dele era mais exigente. Chegava do trabalho às 18:15, tomava banho, jantava, e voltava para mais um turno, que começava às 19:30 e ia até às 22 horas.

Quando ele chegava em casa, às 22:15, nós já estávamos na cama. Só despertávamos rapidamente com seus barulhos, com seu jeito um pouco rápido demais de fazer tudo, como se sempre estivesse a correr contra o relógio. Ele virava as chaves com velocidade, com pressa. No meio da noite isso fazia um bom ruído, que nos acordava, mas nada que fosse incômodo.

Ele ia para a cozinha e, durante um certo período, costumava tomar uma Coca-Cola. Depois de um tempo, passou a tomar um copo de sal de frutas, talvez devido à acidez dos anos de Coca.

Depois da Coca ou do sal de frutas, tampava e fechava tudo com força, desligava as luzes e se deitava. No meio da madrugada às vezes acordava com algum barulho nos arredores da casa. Pegava sua garrucha, a municiava com dois cartuchos, e saia para o quintal, somente de cuecas, para encarar possíveis bandidos. Só víamos sua silhueta um pouco barriguda a sumir na escuridão, no breu de um mundo que podia estar forrado de bandidos.

Poucas noites o tivemos junto de nós, de segunda à sexta-feira. E quando isso ocorria o sentimento era de festa, de uma alegria imensa.

Mas mesmo assim seguíamos suficientemente felizes, com nossa rotina de trabalho, escola e noites de tarefas de casa com televisão e os jantares deliciosos que minha mãe preparava. Pizzas de liquidificador, arroz, feijão, carne, batatas fritas, almôndegas com molho de tomate e sempre uma saladinha bem temperada, com uma comidinha sempre muito equilibradamente temperada, com aqueles temperos feitos no liquidificador, com pimentão, alho, cebola e óleo de soja. Tenho lembranças maravilhosas de uma salada de almeirão que eu mesmo depois, sozinho, nunca consegui reproduzir.

E nas épocas em que não trabalhei nos períodos matutinos, jogava futebol direto, até a hora do almoço.

Não tenho do que me queixar. Sinto que foi uma infância saudável.

Monday, June 12, 2023

Dezessete décimo sétimo

Já faz alguns anos. Estávamos na sala de reunião do CAPS e ouvimos que alguém havia falado muito alto, sido muito rude ou agressivo na recepção. Isso geralmente acontecia com alguns pacientes que acabavam perdendo a paciência, se irritando e se descontrolando emocionalmente.

- Pode deixar que vejo aqui o que aconteceu.

Levantei, abri a porta, olhei para a recepção e não havia ninguém. Olhei para o corredor, e vi o que seria provavelmente um paciente, chutando um de nossos calendários.

Era um rapaz com 20 e poucos anos, aparência bastante saudável, relativamente forte e intimidador. Enquanto caminhava, visivelmente bastante irritado e com expressões agressivas, chutava um de nossos calendários pelo chão, e não percebeu que eu o observava, porque estava de costas para mim, enquanto caminhava CAPS adentro.

Confesso que fiquei um pouco mobilizado com a cena e comuniquei à equipe:

- Chegou um sujeito aí, jovem e forte. Está muito agressivo e aparentemente descontrolado.

Todos se entreolharam, com uma certa apreensão. Lidar com pacientes violentos, e com capacidade destrutiva para causar danos e ferimentos em muitas pessoas, não é nada fácil.

É muito diferente lidar com pacientes violentos que não têm porte físico, como idosos ou mulheres de meia idade, por exemplo. Mas lidar com homens fortes, que apresentam esse tipo de comportamento, é bem mais amedrontador. 

Minutos depois a reunião estava terminada e já era horário do almoço. Passei rapidamente pela sala de espera, e observei que eu esse rapaz estava deitado em um dos sofás. A colega que estava na recepção me informou que ele havia se descontrolado porque o atendimento não seria imediatamente. Já estávamos no horário de almoço, e ele teria de esperar até às 13 horas. Nosso serviço não é equipado para pronto-atendimentos. É um serviço ambulatorial, e isso gera alguma frustração em muitos pacientes que nos procuram, com a expectativa de encontrar ali um pronto-atendimento. 

Para pronto-atendimento teriam que se dirigir ao Hospital São Vicente de Paulo, a 4 km do CAPS, ou ao Hospital de Base, na região do Plano Piloto, distante cerca de 25 km.

Apesar de toda a dificuldade, foi mais um caso que conseguimos encaminhar com um mínimo de tranquilidade. Porque no final das contas o rapaz conseguiu esperar, e assim ocorreu seu acolhimento inicial.

Contudo, para minha surpresa, duas semanas depois, eis que esse sujeito, obviamente temido por todos nós, estava lá, em meu grupo. Havia escolhido meu grupo para participar. 

Quando chegou a sua vez de ser ouvido, relatou suas dificuldades e que tinha passagens pela polícia por agressões e esfaqueamento.

- Porque esse mundo tá perdido. O que não falta é gente folgada, que não tem noção das coisas. E aí chega uma hora que não tem jeito. Você tem que sair mesmo na mão, porque se não fizer assim, você não se impõe. Então é por isso que eu tenho essas passagens… - relatou.

E assim as semanas foram se sucedendo até que um dia, no grupo, ele confessou que, para se proteger, andava sempre armado. Tirou um canivete retrátil de seu bolso e mostrou para todos os presentes.

- Se eu não andasse armado, eu já tava morto. Porque o que não falta aí é vagabundo tirando a vida de pai de família.

Era o primeiro ano de um governo de extrema-direita, do qual ele era seu fiel eleitor e defensor. 

Esse grupo de fala, que coordeno, é o mais antigo do CAPS. É numeroso, aberto e heterogêneo. Diante de tal cenário, não é comum que um ou outro paciente acabe falando um pouco do contexto político e social. E esse paciente violento (que chamarei por um codinome, Jorge) se aproveitava desses momentos para tentar fazer seu proselitismo político-partidário.

- Bolsa Família é coisa de vagabundo. As pessoas que pegam Bolsa Família acabam fazendo disso um negócio e tendo até mais filhos. É por isso que a gente não encontra mais ninguém pra trabalhar. Ninguém mais quer saber de trabalhar. (...) Tá com dó, leva pra casa! (...) Servidor público é tudo parasita. (...) Isso é preguiça, falta do que fazer. (...) As vacinas são um perigo para a saúde! Quer morrer mais cedo, tome vacina!

O detalhe é que ele mesmo vivia à custa de um outro benefício do governo, e tinha carteira de passe-livre para pessoas portadoras de necessidades especiais. Não aparentava ter necessidades especiais, mas tinha um distúrbio neurológico específico, acrescido de vulnerabilidade social e assim, no contexto de governos passados, que promoviam um estado de mais bem-estar social, conseguiu tais benefícios. Odiava esses governos e amava o governante que provavelmente o trataria como bandido e lhe negaria tal assistência. 

Não era tarefa fácil lidar com Jorge no grupo. Tendo um comportamento e um discurso fanatizado, de extrema-direita, tudo era motivo para ali, no grupo, destilar toda sorte de preconceitos e truculência ideológica. Sempre arranjava um jeito de colocar seu proselitismo político no meio das conversas, sendo bem difícil fazer com que respeitasse a vez de seus colegas para falar ou que mudasse de assunto. 

Até que um dia eu mesmo perdi a paciência:

- Olha, se for pra você vir aqui no grupo falar esse monte de mentiras, é melhor mudar de grupo. É melhor não vir. – respondi, já com um tom talvez um pouco rude.

Porém, logo após minha fala, me dei conta que eu talvez pudesse ter me excedido, e assim estava ali, prestes a correr o risco de ser seriamente agredido ou até morto. Pensei: “E agora, o que faço? Falei grosso com o sujeito, e ele é violento...”

Continuei:

- Fulano, me perdõe, me perdõe mesmo. Mas estou cansado. Não estou dando mais conta. Não está sendo produtivo. Isso não está sendo bom para o grupo e nem para você... – agora em tom bem mais sereno.

Continuei em contato visual intenso com ele, olho no olho, sem saber o que poderia acontecer. “Será que agora estou definitivamente ferrado?”, perguntei-me.

Ele continuou olhando fixamente para mim e, para a surpresa da maioria dos presentes, consternou-se.

- Você tá bravo? – perguntou-me, calmamente, com um sorriso de canto de boca.

Foquei ainda mais em sentimentos mútuos, e conseguimos fazer com que a conversa tomasse rumos mais produtivos. Minha sorte residia no fato de nosso vínculo, apesar de tudo, ser suficientemente forte.

Certo dia me perguntou sobre alguns possíveis sintomas de seu distúrbio neurológico. 

- De pronto, não sei como te responder. Mas posso pesquisar e te enviar - respondi-lhe.
 
- Ah, que bom! Obrigado! Tem como me enviar as respostas por zap?

- Posso enviar por Messenger, pelo Facebook. Pode ser?

- Sim, anote aí meu nome no Face: Dezessete Décimo Sétimo.

- Como é teu nome no Facebook? 17 17º???

- Sim, por extenso.

- Ah, sim, entendi... É o número do teu candidato, reiterado na forma ordinal, correto?

- Exatamente! - e me olhou fixamente, sorrindo, com um sorriso que, não sei por quê, me lembrou o sorriso de algum vilão do cinema ou dos quadrinhos.

Algumas sessões se passaram e um dia Joana (nome fictício), uma das pacientes presentes, quis falar da difícil interação que tinha com seu namorado.

- Namorado? Mas você não é casada? – perguntou um outro paciente.

- Sim. Mas hoje não quero falar do meu marido. Quero falar do meu namorado.

- Que é outra pessoa, que não seu marido?

- Claro! Meu marido é um e meu namorado é outro.

Disse que esse namorado era 14 anos mais jovem que ela, e começou a relatar uma série de situações que se caracterizavam como abusivas da parte dele. Seu marido não sabia de nada, e esse namorado fazia o papel de amante.

- Não sei o que fazer, se continuo com ele ou não...

- Desculpe-me, você nos relatou várias situações em que houve abuso da parte dele. Se foi isso mesmo, ele tem se comportado de modo bastante abusivo, tóxico... – era o que eu tentava lhe dizer.

Mas Jorge me interrompeu:

- Ela está reclamando, mas é só isso o que as mulheres sabem fazer. Porque quem carrega o piano é o homem!

E prosseguiu na defesa do namorado de Joana, em debate acirrado com algumas pacientes presentes.

O tom da conversa foi se elevando e os termos foram ficando mais agressivos. Resolvi intervir, com um tom mais leve e espirituoso, em direção a Jorge, para tentar quebrar um pouco com a beligerância que se iniciava:

- Uai, Jorge, você está tão fervoroso na defesa do namorado dela, que está parecendo ser você mesmo o sujeito em questão.

Todos se riram, inclusive ele, que completou:

- Sim, sou eu mesmo!

Todos se riram mais ainda, um pouco perplexos.

As falas saíram da terceira pessoa, e assim Joana e Jorge passaram a discutir frontalmente:

- Você mentiu pra mim!

- Eu não falei nada disso!

Fiz algumas intervenções, contornamos os ânimos acirrados e assim foi possível direcionar as falas para combinações mais produtivas e práticas, inclusive com a oportunidade para que outros participantes também pudessem se expressar.

Tempos se passaram. Joana, assim como muitos pacientes, tinha meu número de telefone, e um dia me enviou uma mensagem, desesperada:

“Adriano, o Jorge foi preso! Tá lá na Papuda, numa situação bem difícil.”

“Como assim? O que aconteceu? Porque ele está preso?”

“Esfaqueou um rapaz. E depois que fez isso, ele fugiu pra um matagal. E aí me mandou essas fotos.”

Jorge havia brigado com alguém, esfaqueado essa pessoa e fugido para um matagal. Logo depois enviou, para Joana, fotos de si mesmo, com seu canivete na mão e todo ensanguentado, com o sangue da vítima em suas roupas.

E Joana, sem pensar duas vezes, me enviou todo o material.

“Agora ele tá lá, preso, e se comportando como uma criança. A coisa ficou tão feia pra ele lá na Papuda, que ele agora tá se comportando como uma criança. Você precisa de ver, Adriano. Ele virou uma criança.”

Apesar do tom desesperado de sua mensagem, ela percebia, com clareza, que havia pouco a se fazer em relação ao fato dele estar preso.

Entrei na internet e comecei a pesquisar por seu nome e histórico. Havia notícias de jornais sobre seus crimes, tanto o último quanto os anteriores. Acompanhei seu caso pela internet durante um tempo, até a informação de que ele havia sido condenado. O juiz o condenou por tentativa de homicídio, com a alegação de que ele era plenamente consciente das consequências de seus atos. Deduzo, portanto, que o juiz tenha argumentado que seu distúrbio neurológico não prejudicava sua capacidade de compreender a gravidade e as consequências de sua infração. 

Do que consigo me lembrar, Jorge ficou preso de um ano e meio a dois anos. Lidar com ele era tarefa muito difícil. Confesso que senti um certo alívio com seu afastamento do CAPS e sua prisão.