Monday, March 28, 2022

Ser agredido e não revidar

Não me defendo, nem fico me justificando quando pacientes se irritam comigo, e há uma tendência que isso ocorra, com maior frequência, no ritmo frenético de atendimentos em um CAPS. Quando percebo que algum paciente está muito irritado comigo, procuro somente ouvir e ser o mais empático possível. 

Então já sofri agressão física, por parte de uma paciente que, por sorte, era menor e bem mais fraca do que eu. Fui ameaçado de agressão por um paciente enorme e marombado. E já fui repreendido por pacientes ou seus familiares, por diversas vezes, e de modo bastante ofensivo, tendo sido classificado como antiético, irresponsável e insensível, com ameaças de processos e ouvidorias. 

Em alguns casos é bem doloroso. Ser agredido, e não reagir, costuma ser doloroso, principalmente por alguém que de fato tem o poder de nos causar sérios danos. Isso às vezes me deixa mal, angustiado e triste, por dias, nos quais fico lidando com o evento traumático, e tentando aprender mais alguma lição com isso tudo.

Houve um dia em que tive de ouvir um familiar de um paciente me proferir os mais variados impropérios. E não era uma pessoa que estava descontrolada. Era uma pessoa com formação acadêmica sólida e com uma vida estruturada, que se expressava com raiva, firmeza, sem qualquer tipo de histrionismo e com poder para me dar muitas dores de cabeça:

- Estou assustada com o quanto o senhor foi insensível e irresponsável em sua intervenção. Como pode um profissional com sua bagagem, títulos acadêmicos e experiência, se comportar dessa maneira?

Foi uma humilhação espetacular. Os pontos em questão eram sensíveis e propícios à polemização, da qual me abstive, por completo. Vesti o manto da empatia, dos pés à cabeça. Ou seja: engoli minha língua e ouvi o máximo e mais profundamente que pude.

Defender-me, ou tentar me justificar, produziria consequências que entram em um campo de disputa ainda mais inflamável para o que já estava em plena combustão. Minha experiência e minha formação me diziam que aquele familiar devia mesmo se expressar, botar para fora o que estava sentindo.

Eu procurava não gratificar suas expressões de raiva. Era silêncio, empatia e acolhimento, para permitir vazão e assim baixar a poeira. Porque há um momento em que a tormenta passa, a poeira baixa, e as pessoas até percebem que se excederam. E até chegar essa hora, ou esse dia, é isso mesmo, aguentar a dor de ter sido agredido sem revidar, sem reagir.

Por sorte, no atendimento seguinte tive o prazer de acolher todo o sofrimento de alguém que estava sendo totalmente escorraçado e rejeitado pelo mundo todo de seus afetos. Era alguém que se sentia odiado pelo mundo inteiro, aquela pessoa que todo mundo odeia, que ninguém mais ama, e que muitos têm o desejo de trucidar. E ela estava ali diante de mim, diante de um de seus únicos portos um pouco menos tempestuosos, para poder ali pairar um pouco sobre tanto rastro de sangue e dor de sua história dilacerada. 

No final do dia ainda doía bastante, mas eu já era capaz de respirar mais aliviado.


Friday, March 11, 2022

Rotinas dos anos 90

Houve alguns períodos, nos anos 90, durante minha graduação, em que eu praticamente não ficava em casa, só na USP, e tomava café da manhã, almoçava e jantava no bandejão, sem qualquer tipo de lanche durante os intervalos. Só fazia um lanchinho por volta das 23 horas, quando eu chegava em casa.

Aulas de manhã e à tarde, biblioteca, nadava das 18 às 19 horas todos os dias, ou quase todos os dias, jantava e ia de novo para a biblioteca, e lá ficava até ela fechar, às 22:30 horas. Então teve época que nem banho eu tomava em casa, e nem tomava banho com sabonete. Saia da piscina e tomava uma ducha, para tirar o cloro, sem sabonete nem xampu nem nada. 

Nadava inclusive em dias muito frios, de inverno, com a piscina completamente vazia, sem ninguém junto. Teve inclusive uma vez que eu e alguns amigos pulamos a cerca e invadimos a piscina, de madrugada. Foram embora e fiquei lá, sozinho, na escuridão total, boiando. Senti medo? Claro. Mas nadar no inverno e na escuridão, sozinho, eram coisas que me davam um senso muito grande de fruição e realização.