Sunday, November 15, 2020

Chico e uma camada da saga de minha família materna

 

Hoje, por acaso, me lembrei que a primeira vez em que cuidei de um bebê, diariamente, foi em 1988, com 16 anos de idade. Minha tia, irmã de minha mãe, passava por crises psicóticas, e acho que até teve sarna. Ela tinha dois filhos: minha prima, com 12 anos e o Chiquinho, que tinha somente 6 meses.

Minha mãe então escolheu terminar de jogar seu casamento no lixo, levando os 3 para morar conosco numa casa de 2 quartos. Chiquinho se apegou com todos nós, principalmente comigo. Troquei muitas e muitas vezes suas fraldas, além de diversos banhos, sem banheira mesmo, no muque. Fazia-o dormir no skate.

E lembro da noite inteira, em claro, tentando fazer com que ele, com dores de ouvido, parasse de chorar, somente eu, ele e minha prima. Ela entrava na puberdade, e eu estava lá havia dois anos. Sim, entrei na puberdade somente aos 14 anos.

Casa pequena, de dois quartos. Meus pais dormiam em um, meus dois irmãos na sala, eu, minha prima e Chiquinho no outro quarto. Minha tia internada em um hospital psiquiátrico, por meses.

Eu com 16 e minha prima com 12, sozinhos, por meses, dormindo todos os dias no mesmo quarto. Hormônios que explodiam, em ambos. E no meio da noite nossos corpos se encontravam no risco constante dela ali, aos 12, engravidar de mim, aos 16.

Dois anos depois dois amigos não entendiam como eu havia resistido. Três anos depois, já na universidade, dois ou três idiotas tentaram me humilhar, dizendo que sabiam de minha virgindade e que isso seria espalhado aos sete ventos, ou que rifariam meu corpo para angariar dinheiro para a formatura. E eu somente sonhava que meu pai fizesse comigo o que vinham fazendo havia gerações, que me levasse pra um puteiro, pra que eu pudesse me libertar logo daquele fardo.

Mas voltemos a Chiquinho. Ficou um pouco mais de 6 meses conosco, dos 6 meses a 1 ano de idade. Lembro de quando engantinhou por cima de todos nós, na cama grande, de casal, no quarto de minha mãe. Fez um gracejo para cada um de nós, enquanto todo mundo estava ali, junto, deitado, assistindo ao Globo Repórter. Foi um momento memorável, de amor, de todos por aquele serzinho que começava sua vidinha.

Quatro anos e meio depois, em 1993, minha tia estava novamente internada e Chiquinho volta a ficar alguns dias conosco. Ele já tinha 5 para 6 anos. Eu tinha 21. Seu pai morrera de câncer, três meses antes dele nascer. Não o conheceu. Mas tinha uma referência.

Durante esses dias em que ficou conosco pediu para minha mãe para que eu fosse o pai dele. Minha mãe achava engraçadinho. Eu ficava pensando se valia pena assumir. Levava pra terapia. Sentia algo profundo. Meu coração doía por Chiquinho. E o dele por mim.

“Chiquinho é a imagem que você tem de si mesmo quando pequeno: frágil, sensível demais pra esse mundo...”, dizia o residente de psiquiatria da USP, que me atendia em 3 sessões psicanalíticas por semana. Mas não sei exatamente se era ele quem dizia isso ou eu mesmo, talvez já deitado em um divã, e sentindo como se escancarasse o mundo inteiro a cada sessão.

Um ano depois minha prima, com 18 anos de idade, morava em Sampa e namorava com uma moça que, por coincidência se chamava Adriana, e era da minha idade. Juntas montaram uma empresa, que prospera, até hoje, e muito mais do que qualquer um de nós poderia imaginar.

Três anos depois, em 1996, Chico já era outra criança, bem mais fortalecida para enfrentar esse mundo cão. Jogava muito vídeo game, bola e tinha amigos. Não precisava mais de mim. Eu respirava um pouco aliviado. Mas deixei uma coisa clara para minha mãe:

“Se ele, daqui uns 8 ou 10 anos não entrar pra criminalidade, nós já estamos no lucro.”

Nove anos depois, com 17 anos, em 2005, Chico estava em coma, no Hospital das Clínicas de São Paulo. Fugia da polícia, com mais alguns parceiros, de carro, após alguns assaltos que fizeram. Seu carro perdeu o controle e bateu em um caminhão de lixo. Chiquinho quebrou perna, não sei mais o quê, e ficou em coma, entubado. Pensamos que morreria.

Coisa de um mês depois, peguei um avião pra Sampa, pra depois pegar um ônibus pra Ribeirão. Minha prima me pegou no aeroporto, para depois me deixar na rodoviária. Se eu visitasse Chico no hospital, não chegaria a tempo da festa de despedida de meu irmão, que partia do Brasil para Londres, para nunca mais voltar. Isso mesmo, já são mais de 15 anos em Londres. Não faz mais sentido voltar.

Então não visitei Chiquinho no hospital. Minha prima ficou muito triste comigo.

Nunca mais vi o Chico. Somente via, de vez em quando, algumas fotos desfocadas dele, que minha prima nos enviava, de suas idas e vindas de internações para parar ou diminuir o uso de cocaína.

Internava, se convertia ao neopentecostalismo, e logo em seguida voltava pra bandidagem. E tome depois uns 3 anos de cadeia, do qual voltou mais manso do crime, mas ainda em uso pesado de álcool, tabaco, maconha e coca.

Em 2013, aos 25 anos de idade, teve uma overdose e ficou em estado vegetativo por uns dois meses. Mas me avisaram somente poucos dias antes de sua morte. Eu estava recém-operado de hérnia inguinal e caminhava com dificuldades. Não pude ir ao funeral.

 

Parte 2 (sem revisão gramatical, somente para registro):

Minha tia foi vida loka, a vida inteira. As crises com sintomas psicóticos só começaram a acontecer na vida dela aos 35 anos de idade, quando já tinha um ano ou mais de convivência com outro vida loka, o pai de Chiquinho, o Francisco.

Foram um casal que deu muito trabalho para minha família nos anos de 1985 e 1986. O reveillon de 1984 pra 1985 passei na casa deles, em Sampa.

Foi um reveillon vida loka. Fiquei eu e Cako (meu irmão mais novo) com eles durante uma semana. Chiquinho ainda não tinha nascido. Francisco nos levava para passear de carro. Rodava as ruas de Sampa a 140 km/h, e ninguém com cinto de segurança. Entornava uma garrafa de uísque atrás da outra. E minha tia o tempo brigando com ele, ameaçando de se matar. Por vários dias eu fui o mediador dos dois, com 12 anos de idade. Depois disseram a meus pais que eu tinha sido o anjo que os tinha impedido de um matar o outro naqueles dias. depois de uma semana Francisco pegou seu VW Santana, botou a gente dentro (eu, Cako, prima, ele e minha tia), e voamos pra Ribeirão, o tempo todo a 150/160 km/h, e ele talvez sempre Chapado de alguma coisa. chegando em ribeirao, na anhaguera, por volta de umas 21 hs, vimos que havia ocorrido um acidente. um caminhao havia atropelado um ciclista. francisco foi devagarinho iluminando o asfalto. havia pedaços do ciclista na pista, por dezenas, talvez centenas, de metros. fui la com francisco ver o corpo. parecia uma carne de açougue na qual somente reconheci um corpo humano pelo que havia restado do cranio, somente com alguns poucos cabelos. eles passaram alguns dias em ribeirao. um dia vi que meu pai ia pro bar, beber e conversar serio com francisco. botou a 765 na cintura e a escondeu, sob a camiseta. disse pra minha mae que ia fazer o francisco entender algumas coisas. passaram a tarde toda bebendo. voltaram bebados. acho que depois dessa conversa francisco ficou mais esperto. deixaram de nos azucrinar por um tempo. dois anos e nove meses depois, em setembro ou outubro de 1987, francisco morreu de cancer. acho que foi leucemia ou algo no figado. nao me lembro mais. chiquinho nasceu em 07 de janeiro de 1988, uns 3 meses depois da morte de seu pai e um dia antes de minha tia completar 39 anos.

minha tia ficou estavel, sob uso pesado de antipsicoticos, praticamente somente dormindo, assistindo novela e comendo, morando a maior parte do tempo somente ela e chiquinho, de 1993 a 2013. depois da morte dele, em 2013, ela continuou estavel, sob controle pesado de antipsicoticos, até 2016. ou seja, 23 anos sem parar de tomar antipsicotico de deposito, todo mes tomava uma injeçao. aí em 2016 ela parou de tomar todos os remedios. e acho que conseguiu ficar assim uns meses ou cerca de um ano, quando voltou a ter crises maníacas. minha mae ficou possessa e culpou minha prima. minha mae, que sempre foi, para minha prima, a grande matriarca de toda a grande familia, uma familia sem referencias masculinas, sempre comandada por mulheres, esta mulher, minha mae, nao conversa mais com minha prima, que ja deve ter chorado muito em funçao disso. minha tia está, ha cerca de dois anos ou mais, morando em uma clinica de repouso em sao paulo. fui a sampa em janeiro, passei somente um dia e meio por la. nao tive tempo de visita-la. mas passei deliciosos e preciosos momentos com 4 primos e minha tia, uma outra tia, irma de meu pai, de 64 anos, que ainda é uma mulher muito bonita. minha prima esta muito bem. vive uma vida feliz e prospera, e ja estava se preparando para seu terceiro casamento, agora com uma psicologa, novamente com uma psicologa que, por coincidencia, tem o mesmo nome que minha filha. de suas tres ou quatro unioes conjugais, duas foram com psicologas. todos jantamos juntos, um jantar lindo, na casa dessa minha tia, irma de meu pai. ela mora em uma casa pequena, aconchegante, e muito bonita, com seu filho, de 29 anos, que é publicitario. ela mesma preparou um jantar lindo, maravilhoso, no qual todos confraternizamos e bebemos bom vinho. e eu deixei claro a todos ali que 2020 será uma decada muito dificil. minha prima foi embora mais cedo, bem mais cedo. é executiva. está habituada a reunioes rapidas e resolutivas. e agora faz higiene do sono, seguindo todas as recomendaçoes do "oraculo da noite", de sidarta ribeiro. minha prima nunca precisou tomar medicamentos psicotropicos, e hoje esta mais ligada ao pai que, aos 77 anos, mora sozinho, é totalmente independente, e ainda presta serviços para a empresa dela. meus outros dois primos sao dois irmaos. um de 39 e a outra fará 35 em dezembro. o de 39 mora tambem sozinho, em sampa, e é militante do pt ha uns 20 anos. seu pai é bolsonarista, e mora em ribeirao, com esta prima, que fará 35 em dezembro. jantamos e fui dormir na casa dele. ele saiu para comprar pra mim e pra ele, um travesseiro antirrefluxo. só durmo em rede ou com travesseiro antirrefluxo. no meio da madrugada minha prima pediu por socorro. havia dormido de bruços e nao conseguia se virar. é cadeirante. padece de uma doença neurodegenerativa, a qual matou, que eu saiba, tres tios de minha mae. lembro bem de um deles, que tentou se matar em 1980, tomando aquele veneno para ratos. essa doença o castigou durante uns 15 anos ou mais. minha prima está doente ha mais de 10 anos. antes disso era tambem vida loka, como chiquinho e como minha tia, que hoje está internada na clinica de repouso.

Ideações suicidas: baobás impossíveis de se cortar ou a possibilidade de uma bela paisagem

Atenção, alerta de gatilho: o texto abaixo é sobre comportamento suicida. Se for sensível ao tema, não dê continuidade à leitura.

Ideações suicidas são muito mais frequentes do que a maioria de nós imagina. Essa informação está contida em um dos livros de Steven Hayes, e ele cita a fonte:

"Pensamentos e tentativas de suicídio são chocantemente prevalentes na população em geral (Chiles & Strosahl, 1995). Cerca de 10% das pessoas, em algum momento, tentará o suicídio. Outros 20% terão dificuldades com ideação suicida e terão um plano e meios para realizar o ato. Ainda outros 20% terão problemas com pensamentos suicidas, mas sem um plano específico. Assim, metade da população enfrenta níveis, de moderados a severos, de comportamento suicida em suas vidas"(p. 07).

Faço parte dessa metade da população. Mas demorei muito para ter pensamentos assim. Talvez eu pela primeira vez tenha tido consciência de que alguém tinha acabado com a própria vida quando estávamos eu e meu pai caminhando, a uns 200 metros de nossa casa, quando eu tinha uns 11 anos de idade, e ele me mostrou uma casa na qual, havia poucos dias, uma pessoa havia cometido suicídio.

Sempre que eu passava na frente daquela casa pensava naquele ocorrido horrível. Sentia aversão. Percebia aquele contexto como absolutamente sombrio e repugnante. Não conseguia compreender como alguém era capaz de cometer um ato tão atroz contra si mesmo. Transformou-se para mim em um tabu. Era algo sobre o qual eu não gostava de pensar nem de imaginar para qualquer pessoa, muito menos para mim.

Mas isso se desfez depois que entrei na universidade. Já no primeiro ano do curso de psicologia comecei aceitar mais esta possibilidade, talvez como um ato mesmo de liberdade, tanto para os outros quanto para mim mesmo.

Por que todos temos essa liberdade. No Brasil não temos esse direito. Mas o ato, escapar disso tudo, está ao alcance da maioria de nós. E quando digo liberdade, menciono o conceito em seu sentido mais vulgar, somente para poder me comunicar melhor, em um texto que tem a pretensão de ser breve.

Uma coisa que me chama a atenção, em minha própria experiência, nos últimos 30 anos, é o quanto a minha percepção foi se alterando, e o fato de que o desejo de morrer foi, por diversas vezes, acompanhado por experiências de grande prazer.

Já tive e tenho minhas ideações, como a metade das pessoas desse mundo. Mas elas também se alteraram bastante. No artigo científico que publiquei sobre o tema, o qual é o relato do caso de meu irmão mais velho, que se foi assim, em 1998, trago a metáfora do baobá.

A ideação suicida seria como uma semente ou uma pequena muda de baobá. É melhor cortar logo pela raiz. Porque quando começamos a cultivá-la, ela tende a crescer, adquirir raízes, e se transformar em um enorme baobá que pode se apossar de nossa vida por completo. O que antes era somente um desejo, até mesmo indefinido, pode se transformar em alternativa válida, porta de saída para todo e qualquer tipo de aborrecimento. Ou a pessoa pode começar a ficar fascinada pela morte.

Sinto que tanto eu quanto Edu, meu irmão que se foi, éramos, em 1993, fascinados pela morte. Mas jamais conversamos sobre isso, sobre esta fascinação, no nível pessoal. O mais próximo a que chegamos, numa conversa, neste sentido, foi quando ele se preocupou comigo, achando que eu pudesse tentar alguma coisa.

- Dri, meu irmão, li isso aqui que você escreveu, e fiquei preocupado...

- Não há com que se preocupar, eu lhe garanto. Isso é somente exercício poético, literário...

Ele insistiu em se mostrar preocupado, e eu inverti:

- Poxa, Edu, convenhamos, quem está em mais risco aqui é você, e não eu.

Vi que ficou um pouco surpreso, achando que eu não soubesse de nada, que eu não percebia o quanto ele era suicida. Mas deixei muito claro para ele que era muito angustiante saber que ele uma hora poderia fazer alguma coisa. A possibilidade de chegar em casa e encontrar alguém que fez uma coisa dessas é horrível.

Senti que ele havia percebido que algo assim poderia gerar muito sofrimento em muitos de nós, e continuei durante todos os cinco anos seguintes (assim como eu já vinha fazendo havia cinco anos, desde 1988) fazendo o que eu podia para que ele se sentisse mais feliz, e percebesse que de alguma forma a vida dele valia a pena.

Minha capacidade de ajuda e prevenção a alguém numa situação dessas era muito menor do que a que tenho hoje. Hoje compreendo tudo isso, em termos de intervenção psicológica e em termos éticos, de um modo muito mais vasto e profundo do que nos anos 90.

Cada um fez o que pôde e cada um tinha seus limites, e muitos de nós tivemos importantes aprendizados depois dessa tragédia.

Mas esse texto já está ficando longo, e se desviou para pontos sobre os quais já tratei em detalhes no artigo e na versão, em formato de crônica, em português.

Eu queria mesmo é falar da forma das ideações. Meu baobá já existe há muitos anos, e convivo muito bem com ele. E ele não cresceu sob o piso de minha casa, destruindo tudo e invadindo minha vida.

Hoje tenho tudo muito bem delimitado e separado. O baobá é hoje uma paisagem linda que tenho em minha janela, e que sei que posso um dia ir lá, quando for necessário, quando for a hora.

Sinto que a vida, além de um direito, é também em boa medida, para muitos de nós, um dever. Temos deveres para com quem nos ama, e sofreria muito com nossa falta repentina.

Então não tenho mais ideações que estão crescendo e tomando conta da minha vida. Não tem mais nada a ver com isso.

E se você leu até aqui e pouco entendeu, talvez você precise compreender, em maiores detalhes, o que são ideações suicidas, tabus sobre o tema, suas modulações sociais e históricas, e os conceitos de: liberdade, direito, ética, e todo o debate sobre eutanásia e suicídio assistido.

Referência:

S.C. Hayes et al (1999). Acceptance and commitment therapy. New York: Guilford Press.