Sunday, August 23, 2020

Quando cheguei à Brasília, em 1997

 Hoje tivemos de ir ao Plano Piloto. Luisa, minha filha, quis saber qual foi o primeiro lugar em que morei quando cheguei em Brasília, em 1997, para fazer o mestrado na UnB. O lugar em que primeiro morei foi um predinho JK na quadra 412 sul, originalmente de um quarto que foi minha casa de março de 1997 a abril de 1998, quando mudei para o alojamento da UnB. 

Esse apartamento da 412 sul era originalmente de um quarto mas que, em nosso caso, tinha dois quartos. Transformaram o banheiro em quarto e a área de serviço em banheiro. Botei uma beliche nesse banheiro, transformado em quarto (veja na primeira foto), no qual somente cabia uma beliche, um armário de duas portas (de meu colega de quarto, que era qualquer um que aceitasse estar ali) e minha estante de aço, na qual eu conseguia colocar tudo o que eu tinha de pertences.


1997 foi um dos piores anos de minha vida, no qual senti uma solidão extrema, que nunca havia sentido antes. Eu simplesmente não conseguia fazer amigos em Brasília. Em Ribeirão Preto as pessoas eram bem mais calorosas e próximas. Em Brasília imperava um cheiro horrível de apartheid social e as tribos eram muito fechadinhas. As pessoas não conversavam com estranhos e parecia não haver muita gratuidade nas interações com desconhecidos. E assim tentei sobreviver aqui, como um completo estranho, durante um ano. Quase desisti de tudo, para me tornar professor de inglês. Mas, como eu sempre adiava o dia da desistência, da rendição, acabei sobrevivendo à Brasília, ao mestrado, à minha solidão.

- Mas quando tudo melhorou, papai?

- Quando chegou o peruano, minha filha...

O peruano era Martin. Ele dormia na parte de baixo da beliche e eu na parte de cima. Martin trouxe uma televisão e alegria de viver com simplicidade. Compartilhávamos algumas refeições (ceviche, uns mexidos que eu fazia e outras coisinhas mais), psicotrópicos recreativos e sucos, principalmente chicha morada. Martin havia trazido leveza e vida comunitária para um lar que antes era dividido entre o quarto do playboy (o terceiro morador, que habitava o quarto real) e o resto, que era um grande vazio, porque eu praticamente morava na biblioteca da UnB e, antes de Martin, meus colegas de beliche eram muito ausentes. Um vivia em imersões em trabalhos de campo, no meio do mato, para seu mestrado e o outro era uma pessoa seca, esturricada, absurdamente miserável, avara, anal, altamente controlada e limitada, com a qual não era possível ter uma troca que me tirasse do deserto no qual eu ainda resistia em respirar.

Vejo aqui que hoje o aluguel de um apartamento desses está por volta de R$ 1200. O playboy pagava metade e o condomínio era dividido por 3. Resumindo: se fosse hoje eu ganharia 1,5 mil de bolsa de mestrado e pagaria 450 reais para morar (aluguel mais condomínio). Bastava eu pegar uma folha de papel, escrever “Vaga em república, na 412 sul! Aluguel + condomíno = 450 reais!”, e pregar em alguns murais da UnB, que logo aparecia alguém. 

Lembro que eu estava em Ribeirão, em algum feriado de 1997, e recebi o telefonema de alguém que queria a vaga. Eu nunca tinha visto a pessoa, nem tinha referência alguma do sujeito, e aceitei. Não havia nada de valor que alguém pudesse me roubar. 

Eu vestia camisetas promocionais de políticos ou lojas, tinhas poucas roupas, somente um ou dois pares de tênis, meu colchão era uma espuma, anteriormente usada por anos a fio por um idoso, que morrera, dois anos antes, e aquele colchão acabou se tornando meu gostoso repouso, que eu havia trazido de Ribeirão, junto com minha Caloi 10 1976 (com guidão de Ceci), enrolado e pendurado em meus ombros com uma corda (a mochila num ombro e o colchão no outro), em cima da bicicleta, da rodoferroviária do Plano Piloto até a 412 sul, em março de 1997. 

E 1997 foi um ano bem difícil, com minha lembrança culminante de angústia e solidão quando, não aguentando mais, resolvi pegar minha Caloi 10 1976 e cruzar o Plano Piloto, lugar no qual nunca mais quero morar. Saí da 412 e fui devagarinho me dirigindo para  a Asa Norte. Objetivo: conhecer as garotas de programa da 315 norte, sem saber que 12 anos depois eu iria morar bem em cima delas, na 715 norte.

A carência era tanta que eu imaginava que uma garota de programa poderia me resgatar. Mas eu nunca havia passado uma noite com uma delas, apesar de sempre ter sentido uma curiosidade enorme. Então, em pleno domingo à noite, exatamente na hora em que o Fantástico estava passando, eu vagarosamente me dirigia para a 315 norte, uns 15 quilômetros de minha casa. 

Depois de cerca de uma hora cheguei por fim à 315 norte, e as meninas estavam lá, esperando pelos clientes. Algumas eram lindas, transbordavam charme e volúpia. Mas tive coragem de somente apreciá-las ao longe, meio escondido, amparado por minha Caloi 10, de 20 anos de idade.

Engoli minhas palavras, meu desejo de interação, e voltei para casa. No caminho, na contramão da Via W2 Norte, e da vida, eu olhava para os apartamentos e para inúmeros prédios de Brasília e pensava: 

“Ninguém, absolutamente ninguém aqui nesta cidade me conhece, e eu nem tive a coragem de conversar com uma garota de programa. E as garotas de programa são seres tentadores, com as quais nunca interagi mais do que alguns minutos nessa vida. Nunca conheci uma garota de programa. Somente soube uma vez de uma delas, de seu nome de guerra, e de seu convite: “e aí, meu querido, tá a fim de um programinha?”, numa noite perdida em 1988, quando eu tinha 16 anos de idade, logo após ter sido espectador de seu show de strip-tease, em um prostíbulo, afastado da cidade, para onde um amigo de 19 anos havia me levado, juntamente com Edu, meu finado irmão, que tinha 18. “Obrigado, mas não tenho um tostão”. E era verdade. Estávamos ali de bico.

Eu voltava pra casa, sozinho, numa noite de domingo, tarde da noite, de bicicleta, na contramão da rua, da alegria e do prazer, vendo que Brasília era imensa e completamente fria a qualquer tentativa minha de habitá-la com um pouco de meu afeto, de meu desespero em ter ali um pouco de amor...

* Fotos ilustrativas de como eram mais ou menos meu quarto, da beliche, e minha bike, que na verdade era azul.

Thursday, August 06, 2020

Sua mãozinha a repousar na minha


Meu mundo inteiro balança, dança e corre, criança. Corre, criança, corre sua alegria para apaziguar a angústia de quem se pensa dono de tudo, e que não sabe mais brincar. A música da vida toca fundo, em meu coração, quando na minha repousa singela a sua mão...

Depois do vórtice

Como já mencionei anteriormente, aqui em nosso condomínio uma pessoa faleceu ontem, levada pela covid-19. Acordei ouvindo algo que parecia um choro, baixo, sofrido, e logo imaginei que alguém poderia estar velando, em ausência do corpo, o familiar que se fora. 

Ouvi por uns instantes, para compreender melhor...

Era o uivo do vento. Fiquei por um tempo parado, sentindo a anestesia do sono e assim meio veio a lembrança de meu último sonho desta noite. 

Era um pós desastre, o dia seguinte, os dias ou meses que se seguiam após a destruição, após talvez uma grande onda (de muitas) de destruição. Eu reencontrava pessoas e algumas que haviam se perdido durantes os tempos do vórtice, e agora retornavam.

Eu abraçava forte dois grandes amigos. Estávamos os três emotivos. Eram dois homens duros, que haviam sofrido, assim como eu, que nunca me vi como duro ou durão, e também nunca fui visto assim por minha família de origem, meus pais e irmãos. Mas, fora de casa, anos depois, já fui visto como durão por algumas pessoas, e não foram poucas. 

No início da pandemia, no CAPS, muitos estavam assustados, principalmente com as informações que eu trazia, de como seria enfrentar essas ondas de destruição. Até que, em um determinado ponto da conversa, minha voz falhou e saíram-me lágrimas dos olhos.

Pelo olhar e reação de alguns, penalizados com meu choro, com minha expressão de sofrimento, lembrei-me de uma outra colega de trabalho, de outro setor, surpresa:

- Nossa, você também chora, também sofre... Eu não me dava conta disso. Porque você é sempre tão firme, tão duro.

No último sonho desta noite éramos três homens duros, muito duros, que quase ninguém imagina que sofrem, se abraçando, e chorando, dias ou talvez meses após uma forte onda de destruição.

Era um trio de machos infelizes chorando, bem rapidamente, abraçados, como crianças. Aquele abraço rápido e forte, doloroso, que chega a machucar o corpo, de quem pouco se abraça ou não sabe ter e dar carinho. Abraço besta, de macho, de machucar. Um choro que vem como uma onda forte, fulminante, rápida, e em um instante volta carregando tudo o que destruiu, com choros já engolidos e devidamente guardados na gaveta de quem sabe bem que também sofre.

Sunday, August 02, 2020

Humildade

Para ser humilde, amiúde, basta ser acessível, respeitoso e polido (com todo mundo, sem distinção), se expressar de modo simples e claro, e compreender que o acaso desempenha um papel relevante em nossas conquistas, que ninguém é produto de si mesmo. O humilde também é grato. Sabe que sem os outros não somos nada. A construção do eu, dos indivíduos, em suas venturas e desventuras, é sempre coletiva.