Nasci e vivo em uma sociedade machista, mas a voz mais influente para com os filhos, em minha casa, sempre foi a de minha mãe. Nós, os filhos, escutamos dela, nossa infância e adolescência inteiras, sobre o tanto que homens abusavam de mulheres, e ele fazia questão de nos dar inúmeros exemplos disso, principalmente dentro de casa, na relação de meu pai com ela.
Seu pai morreu em 1955, quando ela tinha 8 anos de idade, a duas quadras de casa, atropelado por um ônibus, que lhe esmagou a cabeça; e ter visto seu corpo, com a cabeça esmagada, no necrotério, não foi a pior coisa que ocorreu na vida dessa mulher, minha mãe.
Tendo seu pai morrido, formou-se uma nova configuração familiar, agora somente composta por mulheres: minha avó, com 30 anos, viúva, e suas 3 filhas. Minha mãe era a mais velha, com 8 anos de idade. Minha outras duas tias tinham 6 e 4 anos. Moravam em Ribeirão Preto, no interior do estado de São Paulo, e seus familiares mais próximos, sua família extensa, residiam na zona rural, em municípios distantes cerca de 200 km de Ribeirão.
Essa mulher e suas três filhas estavam isoladas, vulneráveis. A partir dessa condição ouvi, durante minha vida toda, algumas histórias que minha mãe contava. Ela relata que a partir da morte de seu pai surgiram muitas dificuldades. Resumindo: minha avó teve mais três filhos, com outros dois homens. No final das contas tinha 6 filhos, com 3 pais diferentes, sendo um morto, um que nunca assumiu um dos filhos e outro que veio a se casar com ela, anos depois, após uma história repleta de instabilidade, negligência com os filhos e privações as mais diversas.
Minha mãe sempre nos contava que minha avó tinha sido muito negligente com os filhos, e que ela sempre dizia assim:
“Os filhos não são nossos, e quem cria é o mundo.”
Sempre relata um episódio, quando minha avó simplesmente sumiu, foi embora de casa, sem dar muitas notícias, voltando somente 3 meses depois.
“Eu somente sabia que ela tinha ido para Franca, mas a gente não tinha o endereço. Depois fiquei sabendo que ela tinha ido pra lá a procura de um amante. Mas ela voltou somente 3 meses depois e nós ficamos sem assistência alguma...”
Minha mãe tinha 11 anos, suas irmãs tinham 9 e 7 anos, e meu tio, filho do homem que nunca o assumiu como filho, tinha somente 8 meses de idade. Depois de mais ou menos duas semanas não havia mais comida. Minha mãe me disse que alguns vizinhos perceberam e lhes deram algum alimento tal como fubá ou coisa similar. Sim, começaram a passar fome.
Nesses 3 meses tiveram de tentar refúgio na casa de familiares. Com a ajuda de vizinhos e a boa vontade de desconhecidos, conseguiram pegar um ônibus para a “rocinha”, para a casa de alguns de seus familiares. Chegando lá, contudo, sua avó foi clara:
- Vocês entram, mas esse bastardo [o bebê] não!
Minha mãe teve de voltar para a estrada e, segundo sua avó, o bebê deveria ser abandonado em qualquer canto. Minha mãe não teve coragem de abandoná-lo ou de dá-lo para alguém. Novamente, com a ajuda e boa vontade de desconhecidos, conseguiu pegar um ônibus de volta para Ribeirão Preto.
Lembro sempre que minha mãe contava essa história chorando, algumas vezes inclusive na presença também de meu tio, o qual também chorava ao ouvir o relato. Conta que voltou com ele para a cidade e que esses vários e longos dias em que passaram sozinhos teriam sido os piores da vida dela.
Isso porque, antes disso, minha mãe já trabalhava, desde os 9 anos de idade, em troca de comida. No final dia, depois de muito trabalho de faxina, na casa de algumas mulheres que viviam de prostituição, ganhava um prato com arroz cru.
Passou pela casa de muitas pessoas, como doméstica, até mais ou menos seus 18 anos de idade, quando conseguiu trabalho como balconista, no comércio do centro da cidade. Prestes a completar 22 anos casou-se, e um ano depois teve seu primeiro filho, meu finado irmão, Eduardo.
Segundo ela, meu pai bebia muito e, um pouco antes de meu irmão nascer, estava bastante violento. Disse que foi várias vezes agredida, espancada nessa época, ou quando éramos todos já nascidos e pequenos. Relata inclusive que uma vez ele a espancou com um cabo de vassoura, deixando-a com o olho roxo, que ela justificava, para os vizinhos e conhecidos, como um tombo que havia levado.
Sei que meu pai deixou de beber de 1976 a 1984, e que essa época foi marcada por uma certa calmaria. Portanto, dos meus 3 aos meus 12 anos de idade tudo correu mais ou menos bem. Os episódios piores, de maior violência, se deram, segundo ela, antes de 1976, e eu simplesmente não me lembro de tê-lo visto agredindo-a. Porém, meu pai quebrando a casa toda é lembrança recorrente de minha infância e adolescência.
Segundo minha mãe, seu primeiro ano de casamento, sem filhos, foi muito difícil. Ele se comportava de modo excessivamente agressivo, ciumento, e voltava sempre muito tarde para casa. Ela dizia que nesse primeiro ano ele teve uma vida de solteiro.
Conversando sobre isso tudo com minha avó, sua sogra, essa teve uma ideia que parecia brilhante:
- Dá um filho pra ele, que ele sossega...
E assim veio ao mundo meu irmão mais velho, Edu, o qual cometeu suicídio 28 anos depois. Veio com uma missão impossível e absolutamente injusta para com uma criança: salvar um casamento falido.
O resultado é que meu pai continuou do mesmo jeito e, óbvio: a vida piorou, muito. Minha mãe relata que um dos filhos veio da maternidade, no colo dela, na garupa da Lambreta (uma espécie de motoneta da época), e não duvido que tenha sido o Edu. Relata também que, após o nascimento de um de nós, ela teria chegado em casa e limpado a casa toda, deixando-a um brinco, inclusive indo para o chão, de quatro, para encerá-lo.
Minha mãe relatou-nos, algumas vezes, que fez alguns abortos – não sei se 2 ou 3. Diz que, se não fossem esses abortos, nossa vida teria sido muito pior. E eu simplesmente também não duvido disso. Crescemos ouvindo que a vida é dura, muito dura, que o mais importante é a qualidade de vida, que colocar alguém no mundo é uma responsabilidade enorme, que criar filho é muito difícil, que “homem é tudo igual”, que as tarefas domésticas devem ser igualmente divididas por todos, que “mulher burra arruma logo uma barriga” e também:
“Coloque-se no lugar do outro”; “Deus é uma força maior e bela, mas religião é furada, (...) só querem levar seu dinheiro...”; “vocês estudem porque senão vão puxar carroça”; “não me arranjem filho cedo, porque filho é atraso de vida”; “no dia em que eu ficar velha me levem pra um asilo ou me deixem morrer, porque não quero dar trabalho pra ninguém”; e agora, mais recentemente: “seu irmão é que está bem, porque nem conheceu a velhice” – ao falar de Edu; “a velhice é uma merda”.
Ah, minha mãe também sempre detestou flores com hipocrisia.
- Não venha me dar florzinha não. Ou é compreensivo e companheiro ou nada feito!
No dia de hoje, no dia das mulheres, só quero lhe dizer uma coisa, minha mãe:
Você é a primeira pessoa que tentou me mostrar o que é ser mulher. O aprendizado é constante, e ainda tenho muito o que aprender e ouvir. Quero ainda poder escutar em mais detalhes todas as suas histórias e tudo o que ainda não sei. Se hoje consigo entender um pouco melhor a histórica divisão sexual do trabalho e a subjugação da mulher, algumas peculiaridades do universo feminino e seus dramas, em boa medida é porque você ajudou a produzir uma boa base pra isso...
Obrigado, minha mãe!
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