Há poucos dias uma colega de trabalho comentava assim comigo, sobre a morte inesperada de uma pessoa muito querida, pela qual havíamos lutado muito, e que está gerando muito, muito sofrimento em seus familiares.
- Às vezes eu desanimo, Adriano. Às vezes me dá vontade de não fazer mais nada, de não lutar por mais nada, porque no final das contas tudo acaba sendo conforme a vontade de Deus, e não adianta nada a gente tentar ir contra ela.
Tive vontade de semear alguma dúvida, mas não havia condições. Eu estava sem tempo para tal e ainda havia o risco, sério, dessa colega se chatear com qualquer divergência nesse campo, o campo das convicções religiosas. A conversa, porém, se estendeu.
Continuamos conversando sobre a perda de uma pessoa tão preciosa, a qual deixará um buraco enorme, uma ferida aberta em quem precisa dela, em que a ama profundamente, em quem lutou tanto por ela, durante tanto tempo, em quem dedicou a vida a essa pessoa, em quem tinha nessa pessoa o sentido de sua própria vida.
Enfim, imaginem o que é o amor de uma mãe por um filho, por um filho único, de apenas 4 anos de idade, pelo qual se lutou tanto, desde a luta para engravidar (de toda a luta pela fertilização in vitro), depois uma gravidez difícil, o parto, a luta toda para amamentar, noites e noites de esforço intenso, preocupações e vigilância constantes, a solidão de ter que se virar com tudo isso sem sentir o amparo do mundo (o desamparo em uma de suas formas mais cruas, uma mãe lutando sozinha, e esfomeada, ao relento, contra o mundo, por sua cria), lutas diárias, tensões e medos diários e também as manifestações absurdamente incríveis do amor, do gosto pela cria, do gosto que tem ter uma cria para lamber, de dormir juntinho todos os dias com um bebê no colo, no peito, no amor intenso e real de estar junto o tempo todo; no amor que nos destrói e constrói um outro ser, no amor que demole todo um mundo e uma realidade, em virtude da promessa da luz de um outro ser a brilhar no horizonte, em virtude da promessa de um novo mundo que dê continuidade à vida…
Enfim, imaginem o amor de uma mãe por uma criança pequena, que é sua filha única. Imaginem a morte dessa criança, de uma forma totalmente incompreendida, a qual deixou perplexa toda a equipe que cuidava dela, que lutava para mantê-la viva. Ela morreu rapidamente e ninguém, até hoje, quase duas semanas depois, sabe o que ocorreu. A conversa se estendeu sobre esses pontos e minha colega concluiu:
- Mas ainda bem que existe Deus, não é, Adriano?
Novamente eu poderia ter semeado a dúvida, mas novamente me abstive, em silêncio, e pensei: “Pois é, ainda bem que existe a dissonância cognitiva, e que a união e o abraço fraterno de todos os dissonantes lhes traga consolo. Meu abraço não carrega essa dissonância. Meu abraço é o abraço de quem também deseja o alívio das dores dessa mãe, de que sua a vida também não pereça diante da morte de sua preciosa e absurdamente amada filha única. Meu abraço pensa no futuro de todos nós, do que podemos dia-a-dia fazer para que possamos nos fortalecer enquanto sociedade, enquanto miragem de estruturas sociais que sejam capazes de dar suporte para essas mães que perdem seus filhos e o sentido de suas vidas.
Diante disso tudo, sinto, por vezes, que semear a dúvida é quase nada, é irrisório.