Não li, mas minha esposa me falou de uma postagem aqui no FB
de uma menina negra, única aluna negra, bolsista de alguma PUC, e de como ela
relatava todo o sofrimento dela devido a uma certa segregação que sofria.
Muitos de nós, em especial negros e pobres, têm alguma
história de segregação que sofreu. Sou branco e descendente de italianos, mas
nasci em um conjunto habitacional com casinhas de três cômodos e 30 metros
quadrados, além de ter estudado a vida toda em instituições públicas (com a
única exceção para o meu terceiro ano do ensino médio).
Portanto no ensino fundamental e médio pouco tive contato
com pessoas que julgávamos serem ricas ou “burguesinhas”. Porém o pouco contato
que tive foi suficiente para me deixar um pouco traumatizado.
Quando eu tinha quase 13 anos, inventei de estudar inglês.
Fui sozinho até uma tradicional escola de inglês no centro de Ribeirão Preto
(minha cidade natal e onde moram meus pais e quase 100% de meus familiares) e
fiz minha matrícula assim como pedi por uma prova para tentar não começar no
início de tudo como qualquer outra criança ou adolescente.
Até o dia dessa prova, ralei em casa, sozinho, tentando
dominar alguma coisa de uma língua que era muito porcamente transmitida na
escola pública em que eu estudava.
Fiz a prova e consegui começar o curso no J2 (juvenil 2). Um
semestre depois eu tinha a medalha de ouro da melhor redação e nenhuma nota
abaixo de 10. Prestei de novo a bendita prova e pulei duas séries de uma vez. A
sensação que eu tinha naquela época era a de que não importava a série ou o
colégio no qual me colocassem que eu sempre teria o melhor desempenho.
Meu desempenho acadêmico, entretanto, contrastava com meu
coração. O ano de 1985 e o primeiro semestre de 1986 compuseram a pior fase, os
piores anos de minha vida. Sofria muito de angústia, medo e de bizarras e
vexatórias obsessões. Eu não sabia na época, mas tudo isso era reflexo das
péssimas interações sociais e familiares que eu estava vivendo. Uma dessas
interações possuía uma coloração triste e especial: era meu contato com os
“burguesinhos” dessa escola tradicional de inglês. Era contrastante. Eles se
vestiam com roupas de grife e eu vivia nos trapos, vestindo muitas roupas que
eram de meu irmão mais velho ou compradas na Pelicano, uma loja de povão mesmo,
ou de peão, como gostam hoje de falar.
Começava nas roupas, se estendia para os papos, para o modo
de se expressar e infelizmente tudo isso culminava em um desconfortável
estranhamento mútuo, o qual facilmente se transformava no que hoje chamam de
bullying. Era uma terrível e humilhante sensação de isolamento, de solidão, a qual
eu não vivenciava em minha escola, pública e da periferia. Periferia na época,
pois hoje a cidade cresceu muito e deixou de ser assim. Eu pouco sabia como
vivia alguém acima da minha classe social. Sabia muito mais de quem vivia com
menos do que minha família. Minha avó materna era muito pobre, minha mãe foi
muitíssimo pobre. Foi doméstica até pouco tempo antes de se casar, fora o fato
de ter trabalhado desde os 9 anos de idade por anos a fio somente em troca de
comida. E quando se casou, se casou com o pé rapado do meu pai, o qual tinha
somente uma Lambreta, quiça usada e bem velha. Aliás já ouvi até a história de
que um de nós, um de seus três filhos, teria vindo de Lambreta da maternidade.
Enfim, o sofrimento no contato com quem tinha mais grana foi
muito grande pra mim até pouquíssimo tempo atrás. Para se ter uma ideia, lembro
que até o ano de 2000 eu ainda sofria um certo pavor no contato com pessoas de
classe média alta. Na companhia dessas pessoas o que existia era somente
bloqueio, travação total. E isso perdurava até, por exemplo, tomarmos um bom
porre juntos. E para quebrar a barreira eu fazia questão de aproveitar todas as
bebedeiras (e qualquer coisa similar; entendam como quiserem rs) possíveis com
essas pessoas.
Na graduação claro que tive boas e prazerosas vacinas. Na
USP, na Filô, a qual era a minha faculdade, conheci pessoas maravilhosas,
pobres ou com grana. Mas essa vacina ainda não tinha sido a definitiva, pois o
pessoal com grana da Filô se disfarçava muito bem de pobre ou era a completa
exceção do que existia em termos de gente rica ou de classe média alta.
Chegando à UnB, já no mestrado: outro baque. Brasília pra
mim parecia a terra dos hippies de boutique. Eu achava estranhíssimo o cara com
aquele visual meio hippie pegar a pick-up 4X4 colossal dele e ir pra casa
depois da aula. Sentia tudo somente como um cenário de fachada horrível e
voltei a ter verdadeiro pavor dos “burguesinhos”, principalmente no curso de
Psicologia.
Lembro até de uma garota, da Psicologia, que namorou comigo
somente uns dois dias, pois não aguentou a pressão de ter conhecido a minha
casa, o fato por exemplo de eu dividir uma beliche com um estranho num quarto
que tinha o tamanho de um banheiro, pois era um banheiro na planta original dos
apartamentos JK miudinhos das quadras 400 na Asa Sul. Ela não aguentou a
pressão de saber que todos os meus pertences cabiam numa estante de aço de
livros, incluindo livros e roupas, absolutamente tudo. Ah, sim, havia também
minha Caloi 10 ano 76!
Detalhe: eu vestia muitas camisetas promocionais. Sim,
camisas com desenhos de produtos, de empresas. Camisas que você ganha de
brinde, além de um belo par de Havaianas sempre que possível. Porque na USP eu
nunca tive problemas com isso, e tinha muita moral com a mulherada.
Enfim (meu segundo enfim; mas agora é pra valer), esse
contraste é foda pra baralho, meus amigos. Não julguem a moça se vocês nunca
vivenciaram nada parecido com isso. E se vivenciaram não se esqueçam, por
favor, da dor que sentiram. Porque, na boa, falta de empatia e amnésia é um
pouco de degeneração de caráter de novos ricos idiotas.