Em uma sociedade “temente” a Deus como a nossa, poucos ousam fazer tal pergunta. Nesse contexto, para a maioria, a resposta já vem pronta: “óbvio que não”. E é muito interessante prosseguir com o questionamento. Por que não? Por que não posso brincar com Deus? Por que não posso fazer piadas com o nome de Deus?
Uns dirão: “porque é sagrado”. E tudo o que é sagrado não pode ser tocado, violado, explorado ou investigado. Deve permanecer em total mistério, livre de perguntas ou curiosidade racional. Outros dirão: “porque trata-se de ter respeito”. E respeitar é não questionar? Não imaginar? Não brincar? Não suspender um pouco a realidade e testar os limites da forma mais segura possível: brincando?
Sim, porque o brincar está presente inclusive entre os animais não humanos. Até pássaros brincam. Trata-se de lutar sem estar lutando de verdade, de matar sem estar matando de verdade; de morrer sem estar morrendo de verdade. O brincar é instintivo e tem uma função biológica muitíssimo importante: conhecer sem se expor diretamente aos perigos da realidade. É uma forma de investigação, de exploração do mundo e de suas possibilidades. Brincando, testamos e ensaiamos para a realidade. Brincando, conhecemos mais, testamos mais.
Mas, voltemos à Deus. Ele não é perfeito? E o que é o perfeito? É aquilo a que nada falta. Nada falta à Deus. Então também não lhe falta bom humor, esportiva. Se Deus é perfeito, também tem bom humor, também sabe levar na brincadeira. Também sabe distinguir brincadeira de realidade. Ora, então por que não brincar com Deus?
A expressão “não brinque com” pode também remeter inconscientemente a “não brinque com fogo” ou qualquer coisa similar. Ou seja, se algumas pessoas pensam que não se pode brincar com Deus, isso deve-se às possíveis conseqüências aversivas da brincadeira. “Não brinque com Deus, pois você pode se dar mal”. Como assim? Ele pode castigar? E as pessoas que temem tanto assim a Deus, sem o sabê-lo, costumam ser as mesmas que vivem a dizer que Deus não castiga. Se não castiga, por que o temem tanto?
Penso que há alguns motivos básicos para não se brincar com alguma coisa ou alguém:
1. Essa coisa ou alguém podem ferir você. São poderosos e perigosos. São fortes, explosivos, impulsivos, vingativos. “Não brinque com fogo, pois você pode se queimar, se machucar seriamente”. Aplicando esse argumento a Deus: não brinque com ele, ele pode lhe ferir, lhe castigar”. E por que Deus iria ferir alguém que brincasse com ele? Seria revide, troco? Deus também revida? Também se defende e se vinga? É isso?
2. Essa coisa ou alguém pode ser ferido por você. Ou seja, não devemos brincar com o que é muito frágil e pode se quebrar. Então fica assim: “Não brinque com Deus, pois você pode machucá-lo”. E Deus é assim tão frágil?
3. Essa coisa ou alguém é completamente desconhecida. Trata-se do “não brinque (ou não converse) com estranhos”. Se você se julga, como muitos, íntimo de Deus, não há motivo para não brincar. O argumento é mais ou menos assim: “se brinco com meus amigos, pais, irmãos, com todos que me são íntimos, por que eu não brincaria com Deus? Se não brinco, é por que ele me é totalmente estranho?”.
4. Essa coisa ou alguém carece do mínimo inteligência. É incapaz de diferenciar brincadeira de realidade. Deus do céu, até os animais percebem essa diferença. Quando você corre atrás de seu cachorro ou rola com ele no chão, brincando, ele, mesmo sendo irracional, percebe que não se trata de um combate verdadeiro. Tanto que não lhe morde pra valer. E por que Deus não teria uma inteligência tão grande quanto a do seu cachorro de estimação? Fique tranquilo, pois ele com certeza sabe que é somente brincadeira.
Concluindo. Com Deus não se brinca? Se você não acredita nele e vive em uma sociedade livre e democrática, você pode, entre os seus, brincar tranquilamente. O estado não o executará em praça pública por isso. E nenhum conhecido ficará ressentido com isso, pois estará “entre os seus”, como sublinhei. Contudo, estando entre crentes (aqueles que acreditam em Deus), pode ser que você seja hostilizado, pois religião é um assunto deveras inflamado, uma ferida que já custou muitas e muitas guerras e milhões de mortos na face da Terra. Portanto, não custa ter cuidado.
Por outro lado, se você acredita que Deus castiga, que pode magoá-lo com alguma brincadeira, se não se julga íntimo dele, se acha que ele não é perfeito (pois lhe falta esportiva), ou que não entenderá a piada, é melhor mesmo não brincar com o todo poderoso.