A causalidade e seus dilemas. A expressão “é psicológico”, “é emocional” ou “é psicossomático” está na boca do povo. Médicos costumam utilizá-la com frequência. É fato comum: você vai ao médico e ele pede uma série de exames. Não conseguindo encontrar evidências fisiológicas ou orgânicas relacionadas aos males que você apresenta, não hesita, solta logo seu veredicto sagrado: “seu problema é de origem psicológica”.
Alguns encaminham o paciente para um psiquiatra. Outros recomendam psicoterapia. E esses pacientes aparecem em nossos consultórios. E, não muito raro, têm expectativas médicas e até mecânicas em relação à solução de seus problemas. Geralmente esperam que a solução virá de um conserto aqui e outro ali, ou de um medicamento que logo apagará tudo o que lhe tem feito padecer. Pode-se dizer que, nesses casos, muitas vezes o médico passa a batata quente para as mãos do psicólogo. Pois o paciente chega até nós bastante ansioso em relação à solução imediata de problemas que nem mesmo se tem certeza sobre sua possível causalidade.
Dizer ao paciente que é psicológico possui talvez alguns sentidos que seria interessante tratar aqui. O que um médico está fazendo quando enuncia isso a seu paciente? Está de fato apontando a causa dos problemas desse paciente e lhe indicando o melhor caminho ou tratamento a ser seguido?
Na minha concepção não está apontando causa nenhuma. O enunciado “é psicológico” é muito vago para poder ser considerado científico. Se tivéssemos que tornar esta comunicação mais precisa, seria mais interessante comunicar ao paciente que ele deveria procurar profissionais de outras áreas, psiquiatras e psicólogos, por exemplo, para continuar a investigação das possíveis causas de seu problema de saúde.
Não deixo de me lembrar de algumas considerações acerca desse tipo de interações com médicos. Em um determinado episódio da série de televisão “House, M.D.”, o protagonista diz mais ou menos assim: “Quando um médico diz que seu problema é psicológico é porque ele é burro e não descobriu as causas”. Apesar de ofensiva, esta fala chama a atenção para um fato: o que muitos médicos estão fazendo quando emitem esse enunciado tão genérico a seus pacientes? Estão, muitos deles, tentando esconder de seu paciente sua incapacidade ou limites para saber o que está acontecendo? Não são capazes de dizer: “sinto muito, mas não sei o que você tem”? Por que tudo, no meio médico, tem de terminar com uma espécie de veredicto, com um diagnóstico categórico?
Outra passagem da qual me recordo é de Susan Sontag, em seu livro “A doença como metáfora”. Ela diz que se ouvir de seu médico que seu problema é psicológico, se isto ocorrer, peça seu dinheiro de volta.
E há como ter esta segurança toda, enunciando que o problema é “psicológico”? Tem como simplesmente transferir o problema para psicólogos e psiquiatras? Penso que não é tão simples assim. Alguns médicos, nessas situações, estão mais tentando se livrar do problema e de assumir seus limites do que trabalhando para de fato tentar descobrir o que está acontecendo. Assumir seus limites e deixar claro que estão compartilhando a investigação com outros profissionais talvez seja uma devolutiva mais profissional.
Neste mesmo livro, Sontag deixa claro os equívocos históricos que já ocorreram em função dessa atribuição espúria de causalidade. Os exemplos mais notórios são a tuberculose e as úlceras estomacais, sendo que o segundo exemplo é bem recente – só para não nos esquecermos desse tipo de equívoco. No caso da tuberculose, antes da descoberta de sua verdadeira causa, a bacterial, eram atribuídas a ela, também, causas psicológicas. No caso das úlceras estomacais, é bem mais fácil de se compreender o cenário, pois o papel etiológico significativo de um agente microbiano (a Helicobacter pylori) rendeu até mesmo um Prêmio Nobel de Medicina em 2005.
Ou seja, há evidências, na história, da repetição do misticismo de que esta ou aquela doença é “psicológica”. É muito mais fácil atribuir uma causalidade vaga do que investigar de fato o que pode estar acontecendo, com abertura para todas as possibilidades factíveis.
Não estou também, por outro lado, querendo apagar os componentes comportamentais ou interacionais de nossa saúde. Se há a possibilidade desses componentes estarem exercendo sua influência de modo mais determinante, eles devem ser investigados com mais precisão. Há um argumento de Skinner que talvez ajude a compreender essa questão da causalidade. Em seu livro “Ciência e comportamento humano”, mais especificamente no capítulo 3, ele defende que toda causa é sempre externa e que a atribuição de causas internas a nossos comportamentos não teria qualquer função explicativa.
Se um sujeito, por exemplo, está bebendo água com uma frequência alta e perguntarmos o por quê desse comportamento, geralmente teremos a seguinte resposta: bebe água porque está com sede. E assim acabamos ficando reféns de uma explicação circular: bebe água porque tem sede, logo tem sede porque bebe água. E isso não nos leva a lugar algum, a qualquer possibilidade concreta ou precisa de resolução do problema. Se, por outro lado, pensarmos em possíveis causas concretas, teremos algo mais palpável, mais razoável como hipóteses. O sujeito bebe muita água pois pode estar com uma dieta muito salgada; pode estar transpirando bastante, devido a altas temperaturas; pode estar com alguma disfunção orgânica, tal como diabetes, por exemplo. Enfim, essas são hipóteses mais precisas e menos vagas. E isto é investigar, de fato.
Quando alguém diz que é “psicológico”, podemos logo então perguntar: psicológico como, de que maneira? O que este sujeito faz para que assim o seja? Qual é precisamente sua participação? Que tipos de interações ou comportamentos, especificamente, podem ser determinantes?
E até que ponto dizer que é psicológico também pode piorar a situação, em vez de ajudar? Sim, pode haver casos em que a pessoa, ao ouvir um enunciado vago desses, venha a se sentir culpada por coisas que nem mesmo lhe dizem respeito. Para tornar isso mais claro, vamos a um exemplo bem prático. Uma conhecida minha padeceu durante meses de coceiras nas costas. Foi de médico em médico, fez diversos exames, e ouvia sempre o quê? “Isso é psicológico...”. Um belo dia, ela teve uma idéia muito simples: trocaria de marca de sabonete. Assim o fez e as coceiras desapareceram, por completo. E aí me pergunto: onde esses médicos vão colocar essa conversa banal e reducionista de que “é psicológico” depois de uma dessas?
E vamos supor que ela começasse a se sentir responsável por seus sintomas de um modo bastante difuso e comum: “ah, tenho coceiras nas costas, pois sou uma pessoa que carrega rancores, que não sabe perdoar, de ruindade mesmo...”. Enfim, com todo um desfile de superstições modernas, psicologizantes. Sim, pois todo o desespero em atribuir sentidos ou causas, gerando equívocos, é superstição.
É mais fácil nomear logo, encontrar uma pseudocausa para nossos problemas do que a investigação e ponderação razoável sobre o que de fato pode estar acontecendo. E assim também talvez não seja muito difícil desembocarmos em lugares comuns os quais afirmam uma série de outras besteiras atuais, tais como a força do pensamento positivo, por exemplo. Tudo pode, dessa maneira, terminar em algumas idéias pobres e comuns de que tudo depende de nossas crenças, do poder de nossa mente para mudar o que se encontra em nossa volta e por aí vai. Ou seja, se é psicológico, a responsabilidade é inteiramente sua. Logo, além de doente, você ainda terá motivos, obtusos, de sobra, para se sentir também culpado. Um fardo e uma ilusão a mais, e muita investigação a menos.