Há duas
George Bernard Shaw   
Boa parte  de nossos  dramas  existenciais e da conquista  do bem-estar  psicológico  podem ser  relacionados ao modo  como  lidamos com  nossos  desejos . Há quem  pregue a completa  renúncia  ao desejo . Afirmam que  nele estaria a fonte  da infelicidade . Neste caso , em  tese , só  desejamos aquilo  que  não  possuímos. Logo , ao obter  o que  desejávamos, já  não  o queremos mais . O que  nos  incluiria em  um  ciclo  de perpétua  geração  da insatisfação . Esta só  existe se há desejo . Se há insatisfação , infelicidade , elas  geralmente  existem porque  algum  desejo  não  foi satisfeito . 
A felicidade , ou  a alegria , seu  representante elementar , são  frutos  da realização  de desejo . Se alguém  está alegre  ou  feliz  é porque  algum  desejo  foi ou  está sendo satisfeito . Portanto , neste contexto  de argumentação , a afirmação de que  a renúncia  ao desejo  seria um  caminho  para  a felicidade  é insustentável . Na verdade , o foco  deve ser  mantido no modo  como  desejamos. Não  se trata , em  termos  absolutos , de haver  desejo  ou  não . Pois  o desejo  é o motor . É ele , de certo  modo , quem  nos  mantém vivos . Sem  desejo  não  há ação .
Da minha  leitura  de autores  que  escreveram sobre  o desejo , fica uma formulação , um  valor  que  procuro também  adotar  para  minha  própria  vida . Tento  sintetizar , da forma  mais  simples  possível  (ou  até  simplória  – talvez  seja o caso ), um  imperativo  moral  no seguinte  enunciado : 
“Desejar  mais  o que  já  se tem e menos  o que  ainda  não  se não  tem”
A primeira  é a classe  dos desejos  imediatamente  possíveis . E a segunda  é a classe  dos desejos  prováveis . Colocados na balança  de nossa  vida , é mais  prudente  que  existam, em  maior  peso  e número , os imediatamente  possíveis . Esta classe  diz respeito  a tudo  aquilo  que  desejamos e que  pode ser  imediatamente  realizado. É desejar  o que  já  se tem. É desfrutar  de tudo  aquilo  que  já  possuímos. É dar  valor  ao que  temos. Eis  a gratidão , como  uma virtude , e sua  importância . 
Os jargões  populares  “só  dá valor  quando  perde” e “não  dá valor  ao que  tem” traduzem de certa  forma  o erro : desejar  somente  o que  não  possuímos, deixando de lado  toda  uma vida  possível  e palpável , a qual  poderia  ter  sido desfrutada e não  foi. Sinto da seguinte  maneira : não  é necessário  abandonar  nossos  sonhos . Mas  é muito  pouco  saudável  viver  somente  em  função  deles, sacrificar  nossas possibilidades de fruição  e prazer  imediatos  em  prol  de castelos  no ar .
E o que  seria desejar  o que  já  se possui? Muito  simples . É desejar  o que  é imediatamente  possível . Por  exemplo : desejo  chegar  hoje  em  casa  e tomar  um  bom  e relaxante  banho ; desejo  comer  lasanha  no almoço ; desejo , após  o almoço , tirar  uma boa soneca ; desejo  agora  estar  aqui , escrevendo este  artigo , e estou. Nada  disso é simplesmente  provável . São  eventos  que  estão imediatamente  ao meu  alcance . E não  dependem predominantemente de terceiros  ou  da sorte . Lembro de Sartre dizendo coisa  parecida: se depende dos outros  ou  da sorte , então  desista e vá dedicar  sua  energia  a algo  mais  útil . 
É a tristeza  do torcedor , do fã , dos idólotras como  um  todo . É remoer-se por  algo  que  não  depende de nossos  próprios  esforços . É colocar  todas as fichas  de nossas apostas  vitais  em  algo  que  está fora  de nós  mesmos . É abrir  mão  de nossas responsabilidades  e de tudo  o que  podemos fazer  por  nós  próprios , na esperança  inútil  (sempre  inútil , segundo  alguns  autores ) de que  algo  decisivo  aconteça, de que  alguma graça  caia do céu . 
Há, porém , distinções  e sutilezas  existentes entre  os conceitos  de desejo , vontade , e esperança , por  exemplo , que  devem ser  realizadas. Segundo  Comte-Sponville, em  seu  belo  ensaio  “A felicidade , desesperadamente” (2005, p. 60), pode-se desejar  o que  depende de nós  (vontade ) e o que  não  depende de nós  (esperança ). Diz que  toda  esperança  é um  desejo , mas  que  nem  todo  desejo  é uma esperança . Pois  é possível  desejar  o que  já  possuímos, o que  é imediatamente  possível . E isto  seria o que  ele  chama  de “felicidade  em  ato ”. Mais  bem-estar  significa mais  felicidade  em  ato  e menos  felicidade  em  potência  no balanço  de nossa  vida .
Seria tirar  a vida  do condicional , do “como  eu  seria feliz  se isso  ou  se aquilo ”. É fazer  o que  se tem vontade , o que  se gosta , aqui  e agora . O que  se pode fazer  e não  o que  se poderia  fazer . Tirar  proveito , prazer , de tudo  o que  já  temos, por  mais  simples  que  seja. Uma sabedoria  da simplicidade , dos pequenos  prazeres  da vida , muitas vezes .
Comte-Sponville defende que  a conquista  da felicidade  deve se dar  por  meio  de um  “alegre  desespero ”. E o sentido  da palavra  desespero , neste caso , remete à ausência  de esperança , a qual  ele , e boa parte  da história  da filosofia , repudiam. Neste sentido , ter  esperança , esperar , (ou  seja, desejar  o que  não  depende de nós  mesmos ) é desejar  sem  gozar , sem  poder  e sem  saber . Sem  gozar , pois  não  usufruímos do que  desejamos. Sem  poder , pois  não  possuímos o que  desejamos e nem  somos capazes  para  tal . E sem  saber , pois  nosso  desejo  é somente  uma aposta  à derivar  pelo  oceano  do acaso , na crença  de uma fortuna  remota .
A esperança  - ao contrário  da vontade , a qual  está centrada na ação  e em  objetivos  mais  concretos  e imediatamente  possíveis  - é um  desejo  miserável . Não  consigo  deixar  de ver  relação  com  o dito  “sonhar  alto ”, o qual  não  vejo com  bons  olhos . Logo  sinto o cheiro  de megalomanias , adolescência  ou  o mercado  da venda  do sucesso  no ar . Não  creio que  sonhar  alto  seja condição  para  realizar  o que  quer  que  seja. E em  muitos  casos , como  nas manias , o preço  do sonhar  alto  é a negação  da realidade  mais  imediata  e concreta . Há desprezo  pelos  passos  mais  próximos , pela  humildade  de saber  se colocar  na realidade , e um  desespero  (no sentido  de aflição ) em  pular  etapas . Como  se pudéssemos viajar  sem  percorrer  qualquer  caminho . 
Tive um  paciente  acometido por  megalomanias . O que  mais  fazia era  sonhar  alto . E quanto  maior  o sonho , maior  o tombo , se este  não  for realizado. Maior  a frustração . E quanto  maior  for esta, mais  sólida  terá de ser  a estrutura  do sujeito  para  o fracasso , para  a perda , pois  maior  é o luto  a ser  elaborado. E é justamente  o que  não  costuma ocorrer  com  quem  sonha  alto  demais , com  os megalômanos. Eles  sonham alto  para  se esconder , para  fugir  do peso  da realidade . E ficam presos  a um  ciclo  vicioso . Seus  castelos  no ar  se desmancham e caem no fundo  do poço  da frustração . E voltam a sonhar  alto , porque  é isso , no seu  modo  de funcionamento , o que  lhes  resta .
Desejando avidamente tudo  o que  não  possuem, tudo  o que  está distante , tropeçam no passo  mais  próximo . Aliás , a avidez , o excesso  de energia  que  concentramos em  um  único  ponto  de nossos  desejos , é também  geralmente  nefasta . Jargão  popular : “não  ir  com  muita  sede  ao pote ”. Em  muitos  casos  uma atitude  mais  desprendida  e desapegada do objeto  de desejo  é mais  salutar . 
E na verdade  é isso  o que  o mercado  do sucesso , da auto-ajuda, em  boa medida , faz: cria  legião  de apostadores . Vive de vender  apostas . De estimular  o comportamento  viciante de jogo , de aposta . “É necessário  desejar  (pois  assim  o “universo  conspira a favor ”), sonhar , acreditar , ter  fé , esperança , pensar  positivo ”.
O segundo  sentido  refere-se à possibilidade de realização , mas  levando-se em  conta  também  a possibilidade da decepção . E este  seria o segundo  tipo  de catástrofe  que  pode acometer  a existência : quando  nossos  desejos  são  satisfeitos . E é para  o que  chama  atenção  a frase  de Bernard Shaw.
Muitas vezes , devido  a avidez  ou  ambição  excessivas, criamos tantas expectativas  em  relação  à realização  de determinados  desejos , que  nos  esquecemos de todo  o restante da vida . Passamos a habitar  as nuvens  e assim  deixamos de viver . E nos  esquecemos também  que  frustrações  e decepções  não  são  somente  frutos  do fracasso . Elas  podem surgir  da simples  percepção  de que  nossos  objetos  de desejos  não  são  tão  fabulosos  quanto  nossa  sede  os fazia parecer . Porque  a idolatria  quase  sempre  desemboca na decepção . O olhar  faminto  adultera e diviniza o objeto  da fome . Assim , o desejo , o sonho , é traduzido em  necessidade  vital  (com  o perdão  do pleonasmo ).
É este  mesmo  o mecanismo : transformar  o sonho  em  algo  vital ; e a probabilidade  em  certeza . O sonho  realizado ou  a morte . E assim  muitos  sonhadores  deixam de viver , para  viver  sonhando.
Comte-Sponville, A. (2004). Dicionário  Filosófico. São  Paulo: Martins Fontes .
_______________  (2005). A felicidade , desesperadamente. São  Paulo: Martins Fontes .
Ferry, L. (2007). Aprender  a viver . São  Paulo: Objetiva .
