Era uma psicóloga, na faixa entre 40 e poucos e 50 anos de idade. Reichiana de ar solene. Sabia se impor. Talvez para os reichianos deva ser muito importante saber impor respeito, pois muitos leigos podem pensar que vale tudo, que é tudo oba-oba. Não, não é assim, meu filho.
Ela pediu que desenhássemos, numa grande folha, o contorno do corpo de um dos colegas de cada grupo de quatro ou cinco pessoas. Depois passamos a desenhar em volta, livremente. Pediu para que ficássemos discutindo e interpretando o que houvera sido desenhado. Foi divertido. Eu estava inspirado. Muitas idéias, muitas associações. A interação com os colegas estava sendo muito produtiva.
De repente, ela pediu para que deixássemos ocorrer em nosso corpo a expressão total de nosso juiz interno, aquele que vive a nos massacrar, reprimindo-nos o tempo todo, em implacáveis veredictos existenciais. Entrei de cabeça. Eu pulava pela sala e, ao mesmo tempo, me dava uma bronca. Falava uma besteira e, ao mesmo tempo, me punia severamente, com humilhações verbais do pior tipo. Entretanto, quando me dei por conta, eu estava pulando de almofada em almofada, as quais eram várias, espalhadas pelo chão da sala. Tenho um problema de dores nos pés. Pé inchado, sabe como é. Por isso pulava de almofada em almofada.
“Olha o que você está fazendo, seu idiota. Todo mundo está quieto e parado a ser massacrado pelo juiz interno. Somente você é que está pulando pra lá e pra cá feito uma besta! Pare e faça como todo mundo”, disse-me meu juiz prêt-à-porter.
Ruim, todos ouviam o que eu dizia para mim mesmo. Coisa de louco: estava falando sozinho, pensando alto; e mais temíveis sandices. Então dei um jeito de consertar: fiquei paradão também e completamente imóvel. “E cale essa boca!”, completou meu querido juiz.
Percebi que estava saindo fora do padrão. Não somente o meu, mas todos os juízes me massacrariam. Meu surto não seria acolhido.
Ela então pediu para que nos libertássemos do juiz: “Libertem-se! De corpo inteiro! Soltem-se! Mandem o juiz para bem longe!”. Ela tinha um tom de pregadora fanática, conduzindo-nos ao êxtase. E eu já estava em êxtase, ou melhor, em possessão, há muito tempo. Eu estava muito doido. Dilacerando sanguinariamente meu juiz com os dentes. “Uhaaaaaah!!! Agora eu sou liiiivreee!!”. E quem pode com a loucura de quem acaba de se libertar de séculos de opressão silenciosa? Estava louco, e pensei que era justamente isso o que ela queria.
“Isso, agora vocês se deixem cair no chão. Morrerão para renascer renovados, outros!”
Desabei. Seria um novo tempo daqui pra frente.
Ela foi nos acalmando, nos fazendo relaxar, dormir. Agora seria aquele transe relaxado, entorpecido, de quem jaz eternamente na paz de todos os seus sonhos, de toda a vastidão oceânica de seu inconsciente. Eu boiava no meio do Oceano Atlântico. O oceano estava calmo e morno. Era noite, repleta de estrelas e em banho de lua. Meu ser em completa paz e harmonia com todo o restante do universo. Era parte disso tudo. Estava conectado a tudo. Eu e o infinito oceano éramos um só.
E não sei porque, naquele estado geral de completa paz, ela resolveu retomar o tom de sermão, de pregador fanático: “Quem é você , qual é o seu nome?”. Perguntava, em tom enérgico. Eu estava tão fluido, tão oceano, tão movimento puro que, espontaneamente, respondi: “Euclides!”. Não sei porque, foi o nome que me invadiu o espírito e saltou pela boca.
Acho que ela não esperava por resposta alguma, de ninguém: “Euclides?”, como assim?
“Euclides da Cunha, ahahahaha!”. Soltei esta pérola de surtos preciosos em uma risada convulsiva e estranha. Meu corpo estava todo contorcido e minha expressão não era diferente. Um estado de loucura tomava meu ser e eu não era capaz de controlar...
Mas meu surto parou por aí. Penso que a coisa não foi tão grave, pois nossa guru foi capaz de sustentar razoavelmente a situação, não precisando recorrer à qualquer espécie de reprimenda. Talvez tenha sido, quem sabe, até um pouco divertido para as pessoas com quem eu dividia o espaço. Ou no máximo, um pouco desagradável. Fico imaginando possíveis comentários: “Nossa, vocês viram aquele cara? Pirou totalmente”; “Não entendi o que aconteceu”; “Ele estava sabotando a vivência”; “Palhaçada. Falta de maturidade”; “Euclides da Cunha. De onde ele tirou isso? Ahahaha....”.
Claro, depois de uma dessas, as reações podem ser as mais diversas e imprevisíveis. Que bom, ninguém disse nada. Com exceção da nossa guru, óbvio:
“Às vezes estamos seriamente doentes e nem percebemos. Nessas horas é preciso procurar ajuda...”.
Dispensou alguns minutos a tecer um pequeno sermão do alto de toda a sua experiência profissional e de vida. O tom solene e sereno nunca se perdia. E seu olhar estava totalmente concentrado em mim.
Um surto, isolado, ali, naquele contexto, segundo ela, fazia de mim um doente.
Depois de uma vivência tão boa e catártica como aquela, a qual havia me conduzido a um transe incontrolável, eu não tinha disposição nem capacidade para debater ou refutar qualquer coisa. Aceitei o rótulo de doente e ouvi a tudo o que ela disse, encarnando profundamente a expressão facial mais doentia que poderia apresentar-lhe.
Não teve dúvidas e não permiti que tivesse: saiu dali com a certeza de que eu era um doente mental.