Friday, January 27, 2006

VIVÊNCIAS E VEXAMES 2 (EUCLIDES!)

Mais um desafio. Novamente com neo-reichianos. Só que agora era em Bioenergética. Nossa, a primeira vez que ouvi esse nome, não entendi nada. Lembrou-me algo tecnológico. E não tem exatamente nada a ver com isso. Não tem nada nada da frieza da tecnologia. É mais quente do que você imagina.

Era uma psicóloga, na faixa entre 40 e poucos e 50 anos de idade. Reichiana de ar solene. Sabia se impor. Talvez para os reichianos deva ser muito importante saber impor respeito, pois muitos leigos podem pensar que vale tudo, que é tudo oba-oba. Não, não é assim, meu filho.

Ela pediu que desenhássemos, numa grande folha, o contorno do corpo de um dos colegas de cada grupo de quatro ou cinco pessoas. Depois passamos a desenhar em volta, livremente. Pediu para que ficássemos discutindo e interpretando o que houvera sido desenhado. Foi divertido. Eu estava inspirado. Muitas idéias, muitas associações. A interação com os colegas estava sendo muito produtiva.

De repente, ela pediu para que deixássemos ocorrer em nosso corpo a expressão total de nosso juiz interno, aquele que vive a nos massacrar, reprimindo-nos o tempo todo, em implacáveis veredictos existenciais. Entrei de cabeça. Eu pulava pela sala e, ao mesmo tempo, me dava uma bronca. Falava uma besteira e, ao mesmo tempo, me punia severamente, com humilhações verbais do pior tipo. Entretanto, quando me dei por conta, eu estava pulando de almofada em almofada, as quais eram várias, espalhadas pelo chão da sala. Tenho um problema de dores nos pés. Pé inchado, sabe como é. Por isso pulava de almofada em almofada.

“Olha o que você está fazendo, seu idiota. Todo mundo está quieto e parado a ser massacrado pelo juiz interno. Somente você é que está pulando pra lá e pra cá feito uma besta! Pare e faça como todo mundo”, disse-me meu juiz prêt-à-porter.

Ruim, todos ouviam o que eu dizia para mim mesmo. Coisa de louco: estava falando sozinho, pensando alto; e mais temíveis sandices. Então dei um jeito de consertar: fiquei paradão também e completamente imóvel. “E cale essa boca!”, completou meu querido juiz.

Percebi que estava saindo fora do padrão. Não somente o meu, mas todos os juízes me massacrariam. Meu surto não seria acolhido.

Ela então pediu para que nos libertássemos do juiz: “Libertem-se! De corpo inteiro! Soltem-se! Mandem o juiz para bem longe!”. Ela tinha um tom de pregadora fanática, conduzindo-nos ao êxtase. E eu já estava em êxtase, ou melhor, em possessão, há muito tempo. Eu estava muito doido. Dilacerando sanguinariamente meu juiz com os dentes. “Uhaaaaaah!!! Agora eu sou liiiivreee!!”. E quem pode com a loucura de quem acaba de se libertar de séculos de opressão silenciosa? Estava louco, e pensei que era justamente isso o que ela queria.

“Isso, agora vocês se deixem cair no chão. Morrerão para renascer renovados, outros!”

Desabei. Seria um novo tempo daqui pra frente.

Ela foi nos acalmando, nos fazendo relaxar, dormir. Agora seria aquele transe relaxado, entorpecido, de quem jaz eternamente na paz de todos os seus sonhos, de toda a vastidão oceânica de seu inconsciente. Eu boiava no meio do Oceano Atlântico. O oceano estava calmo e morno. Era noite, repleta de estrelas e em banho de lua. Meu ser em completa paz e harmonia com todo o restante do universo. Era parte disso tudo. Estava conectado a tudo. Eu e o infinito oceano éramos um só.

E não sei porque, naquele estado geral de completa paz, ela resolveu retomar o tom de sermão, de pregador fanático: “Quem é você , qual é o seu nome?”. Perguntava, em tom enérgico. Eu estava tão fluido, tão oceano, tão movimento puro que, espontaneamente, respondi: “Euclides!”. Não sei porque, foi o nome que me invadiu o espírito e saltou pela boca.

Acho que ela não esperava por resposta alguma, de ninguém: “Euclides?”, como assim?

“Euclides da Cunha, ahahahaha!”. Soltei esta pérola de surtos preciosos em uma risada convulsiva e estranha. Meu corpo estava todo contorcido e minha expressão não era diferente. Um estado de loucura tomava meu ser e eu não era capaz de controlar...

Mas meu surto parou por aí. Penso que a coisa não foi tão grave, pois nossa guru foi capaz de sustentar razoavelmente a situação, não precisando recorrer à qualquer espécie de reprimenda. Talvez tenha sido, quem sabe, até um pouco divertido para as pessoas com quem eu dividia o espaço. Ou no máximo, um pouco desagradável. Fico imaginando possíveis comentários: “Nossa, vocês viram aquele cara? Pirou totalmente”; “Não entendi o que aconteceu”; “Ele estava sabotando a vivência”; “Palhaçada. Falta de maturidade”; “Euclides da Cunha. De onde ele tirou isso? Ahahaha....”.

Claro, depois de uma dessas, as reações podem ser as mais diversas e imprevisíveis. Que bom, ninguém disse nada. Com exceção da nossa guru, óbvio:

“Às vezes estamos seriamente doentes e nem percebemos. Nessas horas é preciso procurar ajuda...”.

Dispensou alguns minutos a tecer um pequeno sermão do alto de toda a sua experiência profissional e de vida. O tom solene e sereno nunca se perdia. E seu olhar estava totalmente concentrado em mim.

Um surto, isolado, ali, naquele contexto, segundo ela, fazia de mim um doente.

Depois de uma vivência tão boa e catártica como aquela, a qual havia me conduzido a um transe incontrolável, eu não tinha disposição nem capacidade para debater ou refutar qualquer coisa. Aceitei o rótulo de doente e ouvi a tudo o que ela disse, encarnando profundamente a expressão facial mais doentia que poderia apresentar-lhe.

Não teve dúvidas e não permiti que tivesse: saiu dali com a certeza de que eu era um doente mental.

Thursday, January 12, 2006

VIVÊNCIAS E VEXAMES

Sempre gostei muito de vivências e jogos em grupo, sejam oficinas teatrais, psicodrama, biodança, oficina de criatividade e outros mais que pude participar. Porém, houve experiências que não deram muito certo. Isto, obviamente, sob o olhar do ministrante. Em algumas tive comportamentos completamente inusitados ou até mesmo bizarros. E eles simplesmente irromperam de dentro de mim. Foram espontâneos. Em psicodrama e oficina teatral isto foi muito freqüente e nunca tive problemas. Nestas abordagens tive a sorte de encontrar profissionais preparados para lidar com a espontaneidade e que, acima de tudo, a estimulavam e a valorizavam.

Contudo, houve experiências de absurdo, as quais não foram bem recebidas pelos ministrantes, que eu gostaria de relatar. A primeira foi em um mini-curso de Somaterapia. Para quem não sabe, esta abordagem é neo-reichiana. Os somaterapeutas dizem que sua terapia é anarquista. Valorizam muito a liberdade, a espontaneidade, o fluir mais livre das energias corporais, a quebra das couraças, a criatividade.

Apesar de toda minha admiração por esses ideais, acho que posso de repente ter idealizado demais e assim ter passado na medida de minha liberdade e espontaneidade. Ou então o anarquismo das pessoas com as quais tive a infelicidade de lidar era somente uma fachada para se defenderem de seu facismo enrustido.

Vamos então ao que interessa: a vivência fatal. Já estávamos no final do mini-curso. O ministrante deixou-nos de olhos vendados por um bom tempo. Mais de uma hora sem ver o que ocorria. Éramos cerca de 25 pessoas. Caminhávamos pela sala, em silêncio, tocando-nos das mais diversas formas: eram comunicações de costas com costas, cabeça com barriga, ventre com ventre, conversa de mãos que se exploram. Enfim, corpos encontrando outros corpos, das formas mais variadas e inusitadas. Sim, muito interessante.

O ministrante era um japonês. Tinha um ar de sábio sisudo misturado com porralouquice. Sabe aquelas misturas esquisitas que só cabem em japas pirados? Uma coisa assim meio liberdade com porrada. E havia alguns praticantes antigos. Ficavam siderados pelas vivências. Tudo o que o mestre mandava faziam de forma vigorosa e até fanática. Houve momentos em que as pessoas estavam sendo arremessadas para o alto. O mestre ninja pressionava para que fosse mais forte, mais alto, mais perigoso, e todos estavam ali, absortos, massacrando os “covardes” que estavam com pavor de serem jogados para cima. Senti que o grupo às vezes se transformava numa massa sem rosto, sem qualquer espaço para o indivíduo, para o “não quero”, o “não posso”, “é meu limite”, “tenha um pouco mais de paciência comigo”. Resumindo, era um “vai ou reich”. Então racha, meu amigo. Haja violência para se conquistar a liberdade.

Estávamos lá, todos de olhos vendados, depois de muita bolinação. E o mestre shaolin ordena um abraço universal, no centro da sala. Seria a despedida. Todos, sem ver um palmo à frente de seu nariz, grudados. Braços entrelaçando-se, pernas, mão boba (ou esperta) aqui e ali. “Toquem-se da forma que vocês quiserem, sem censura. Pode ser com carinho, com tesão. Não importa”. Imaginem, foi aquela festa. O povo se apalpou pra valer. E não seria muito discreto que eu aqui entrasse em detalhes.

“Agora vamos respirar fundo. Inspira... Expira...”

E assim foi. Até que, de repente, sem que o mestre pedisse, começaram a expirar soltando a voz. Aquilo parecia um gemido de orgasmo, em coro. E os homens gemiam muito mais alto do que as mulheres. O gemido delas foi abafado e ficou inaudível. Se é que gemeram em algum momento. Não fui capaz de me sintonizar com aquilo. Estava me sentindo oprimido pelo gozo titânico de gordos de cueca, suados e com a barba por fazer. Sabe aquela história terrível de sentir um bafo quente e fedido na sua nuca? E fugir não dava. Estava preso no meio daquele mundo de gente. Ia gritar assim (?) : “Pára, pára, pelo amor de Deus, que eu quero descer!?” Impossível.

Pensei, então: vou me harmonizar com isso e soltar a voz também. Como meu sentimento era de opressão, saiu, espontaneamente, algo sofrido e talvez engraçado: uns ganidos desesperados de cachorro atropelado. “Caim, caim, caim...!!!”.

E isso foi uma bomba de silêncio bem no meio daquele monte de corpos em volúpia. Foi uma quebra geral de gozo dos titãs balofos. Por alguns segundos, foi um silêncio fúnebre. Mas logo algumas pessoas se riam muito do coitado do cachorro que caíra do caminhão de mudança. E aí ouvi o que me mais aprazia: a risada feminina. E não aquele gozo suado dos pura-banha.

Pelo tom de voz, vi que o mestre shaolin não gostou nada nada daquilo. “Tudo bem, pessoal. Vamos continuar. Isso acontece.”

E tudo voltou novamente. O gozo infernal dos titãs adiposos. “Não tem problema, desta vez faço a lição de casa e gozo também, exatamente como mestre shaolin deseja: Uhhh.... uhhhh... uhhhhh...!!!”. Também bem grave e bem forte. Mas não era um titã gordo. Foi o gozo de um titã gordo e lesado. Matou todo mundo. Ninguém podia com um titã gordo e lesado, pisando sobre todos os prédios da face da Terra e ejaculando sobre o mundo. Silêncio total. E depois, risadas.

“Quem não quiser participar, fora!”. O mestre shaolin tinha perdido a elegância.

Pensei: fico, e se os titãs voltarem, seguro a barra em silêncio. Pois não quero confusão com ninguém, muito menos com um japa pirado, chefe de um batalhão de fanáticos, disfarçados de libertários.

“Novamente, então, pessoal. Vamos lá: inspirem... expirem...”

E os titãs não voltaram nunca mais.