Saturday, December 24, 2005

NATAL

O Natal é uma ocasião, nem sempre boa, para presentear. Digo “nem sempre boa”, pois força a própria ocasião para tal. É o dia do presente generalizado, do presente gratuito. Gratuito porque você é obrigado a presentear, sem qualquer motivo, a não ser a própria data. E não porque encontramos o que seria perfeito para tal pessoa em um determinado momento e que, se deixasse passar, já não serviria mais. O Natal é a instituição do presente, o presente compulsório, assim como vários outros, prescritos por datas fixas e longe do movimento da vida.
Algumas pessoas até reclamam e dizem que o melhor presente é o imotivado. Aquele da ocasião de sua descoberta, que encontramos ao acaso, sem data pré-definida. O qual se encaixa perfeitamente nos desejos do felizardo. E que ainda tem um gostinho maior de surpresa, já que não era esperado, pois que é fora de data. O melhor presente é o fora de hora, desde que não seja o atrasado.
E há aquelas pessoas com a cultura de presentear. Alguns, mesmo não precisando de nada, querem ganhar presente. Outras (a maioria) sentem carências que presente nenhum irá preencher. Ou pelo menos os presentes que são possíveis de se ganhar rotineiramente. Estou, é claro, excluindo desta lista ganhar na loteria, casa própria, amor ou qualquer coisa que geralmente não cabe em um presente comum.
Ouvi também gente dizendo que Natal é para as crianças, que obrigação de dar presente pra adulto é um saco. E de fato, dar presente pra criança é a coisa mais divertida do mundo. As opções são inúmeras. E as crianças precisam mesmo ser presenteadas. Elas não tem o poder de ir lá e comprar tudo o que desejam ou precisam. Vivem uma carência constante: carência de não poder ir e vir, de geralmente não poder escolher por si mesmas e de ainda não serem senhoras de seus próprios impulsos e emoções. E aquilo que vem “engenhosamente” (assim elas o sentem) das mãos dos adultos é sempre bem-vindo. Ganhar presente é ganhar alguma coisa. O que, por si só, já é lucro. E isso tudo envolve um universo enorme de mitos e fábulas, sobre mundos repletos de personagens e coisas misteriosas e maravilhosas, cheias de alegria e superpoderes.
Saí para comprar alguns presentes para as crianças que amo e que fazem parte de minha vida. E aí nos damos ainda mais conta, sempre, de como o universo das crianças é imenso e fabuloso. É uma coisa incrível a criatividade que borbulha em tudo isso, nas estórias e nos brinquedos. E como o brinquedo precisa da estória e a estória muitas vezes vira brinquedo. Tudo é jogo e experimento. Tudo é transgressível, feito para ser recriado, violado de sua função original, de sua intocável sacralidade. Sem medo. Nada permanece sagrado nas mãos de uma criança... (a continuar)

Saturday, December 10, 2005

SERIEDADE E FALTA DE ESPÍRITO

Em minha tese de doutorado disse, de certa forma, de modo educado, elegante e sutil (ou seja, em formato acadêmico) que psicólogo não pode deixar de ser quem ele é. Autenticidade e espontaneidade responsáveis são talvez rincões privilegiados para a saúde mental, seja no plano do umbigo ou do rebanho. Sempre tive asco por psicólogos que fazem o tipo comedido, equilibrado. Sim, claro, algumas pessoas sempre foram assim.
Mas ninguém é tão sério assim. A seriedade, quando elevada a parâmetro primordial de tudo o que existe, é um atraso de vida. Não suporto gente séria, ou que se leva demais a sério. Trabalhar de modo engajado, envolver-se com alguém, amar, honrar compromissos, preocupar-se também com o bem-estar dos outros, não exclui o riso nem a auto-ironia. Digo “auto-ironia”, porque antes de sermos irônicos, devemos ser capazes de ironizar a nós mesmos. Ironia sem auto-ironia pode ser somente agressão.
Psicólogo que obedece ao estereótipo de resolvido (diga-se, excessivamente ponderado, discreto, sem graça) está perdendo a oportunidade de uma vida mais saudável. “É anti-ético”, disse uma vez um colega de profissão, bêbado. Concordo plenamente. Além de enquadrar sua própria existência na pobreza de espírito do estereótipo, tripudia, goza da cara de quem não é capaz de tal mediocridade e patologia.
Como diz uma colega minha que adora dançar e cantar sozinha, na rua ou em público: uma vida sem alegria não tem sentido. E talvez nem mesmo valha a pena. As pessoas que fazem o tipo sério demais, geralmente estão se escondendo, se defendendo.
E ainda, indiretamente, reprimem uma certa dose de abençoada e esclarecida loucura. Seriedade em excesso é burrice, dogmatismo. Não duvida de si mesmo, porque se leva demais a sério. E não satisfaz, oprime. Porque não dá férias ao pensamento, soltando a imaginação. Não transita. É sem movimento, sem graça. Não percebe que a vida também é jogo e faz-de-conta. Espirituoso é aquele que tem senso de humor ou que cultiva o espírito.
Seriedade demais é deixar o espírito morrer de fome.

Wednesday, December 07, 2005

CRIANÇAS


A tradição em casa era seguir o primogênito. Edu mandava. E Cako, o caçula, obedecia. Eu não. Assim vivi muito tempo no ostracismo. Edu e Cako eram um bloco, eu era outro. Também não havia a menor condição de eu ser o mestre de Cako. Quem faz fronteira não brinca em serviço. Faz guerra. E eu e Cako vivíamos em guerra. Jamais seria seu ídolo. Ela não queria ser engolido por um rival. Não sei se deu pra entender. Eu era o do meio. Disputava interesses tanto com o mais velho quanto com o mais novo. Minhas idolatrias ficavam reservadas para meus pais. Mas não era nada fácil viver espremido entre dois rivais.

Por outro lado, havia muitos e memoráveis momentos de união do trio. E Edu, claro, o mais velho, era sempre o mentor do que iria acontecer ao nosso mundo.

Éramos crianças do interior. Nascemos em uma Cohab. Casas com 30 metros quadrados. Mas era uma Cohab linda, toda arborizada, com jardins em frente às casas. Éramos pobres e bonitos. Meus dois irmãos, loirinhos e de olhos verdes. Dois bebês Johnson. Pareciam crianças de calendário. Uma pobreza colorida, alegre, romântica, sabe. E eu, no ostracismo. Olho claro, mas moreno. Era chamado de “preto”. Mas era um trio bem bonitinho, engraçadinho. Minha mãe sempre nos vestia com roupas iguais e cortes de cabelo meio beatles. Ficava meio circense, meio bonequinhos.

Parecia aquela banda de rock de um antigo desenho animado: “Os impossíveis”. Curly: o homem mola (Cako). Harry (?): o homem fluído (Edu). E Marlon (?): o Multihomem (eu). Paravam no meio de um show e viravam super-heróis, voando para o alto e gritando: "E Vamos Nós !!!". E o Multi-Homem sempre falava para o vilão: "Você pegou todos... menos o original !".

Para os três patetas, eu e Cako éramos os dois idiotas, os que faziam tudo errado. E Edu aquele que vinha pra botar ordem na casa. Papel de mais velho.

E éramos impossíveis mesmo. Edu estava com 10 anos, eu com 7 e meio e Cako com 6. Meu avô resolveu passar o sábado a tarde conosco na fazenda de seu antigo patrão, Dr. Quartim. Pegou seu fusquinha abacate 61. Isso foi em 1980. E lá fomos nós. “E Vamos Nós !!!", gritávamos na estrada, em uníssono. E dá-lhe aquelas tradicionais brigas no banco de trás. “A janela é minha...”. “Não, minha...”. E tome porrada.

Chegando lá, era um ambiente desconhecido. Edu, óbvio, pegou o comando do batalhão. Aí ele virava meu mestre. O que faríamos dessa vida sem o Edu? Isso era forte em nós. Tanto que Cako, há mais de oito anos, quando o Edu morreu, virou-se pra mim, colocou a mão em meu ombro, olhou fundo em meus olhos e disse: “Agora somos só nós dois, negão. Não vai mais ter Edu pra cuidar da gente não”.

E então Edu tomou a frente. Tudo o que ele dissésse, nós obedeceríamos. Afinal, éramos os dois idiotas dos três patetas, né verdade.

Chegamos na fazenda. E era linda, maravilhosa. Plantavam lírios. Inacreditável: havia um morro forrado de lírios, de todas as cores. Lindo, lindo. Cartão postal. E aqueles dois loirinhos e um moreninho, ficava mais calendário ainda. Copiava certinho o padrão de beleza europeu que o mundo todo compra.

Encontramos alguns pedaços de canos antena, de alumínio. Caniços de antena. Pareciam espadinhas. Ah, claro, não deu outra. A espadinha cortava lírio como em filme de samurai. Meu avô se distraiu um pouquinho. E quando chegamos lá em cima do morro. O que já havia ocorrido? Eu, Edu e Cako, abrimos uma estrada bem no meio do morro. Acho que decepamos milhões de lírios em questão de minutos. E, fora de brincadeira, gente. Edu olhou para o mundo que jazia a seus pés, como se tivesse acabado de desbravar o Everest. E em pose de mestre disse:

“O caminho se faz ao caminhar...”

Meu avô ficou louco.