Wednesday, September 07, 2005

UM SENTIDO PRA VIDA

(Antologia do Prêmio Sesc-DF de Contos, 2005)


Fico muito introspectivo quando caminho. Certo dia, daqueles que brilham de forma diferente e em que já estamos introspectivos, estava a caminhar e alguns pensamentos muito intensos surgiram em meu ser. Resistiam a qualquer questionamento: percebi o quanto é inútil viver somente para si mesmo; o quanto a vaidade e uma ambição demasiadamente narcisista geralmente toma conta da vida de todos, senão de quase todo mundo. Percebi o quanto minha existência era e estava sendo absurdamente medíocre na tentativa de alcançar algum sucesso nessa vida, como a maioria das pessoas. Sonhava em ter sucesso no que faço e consumia boa parte de minha vida em devaneios acerca de mim mesmo e do que eu poderia ser. Resumindo, a conclusão fatal era de que tudo nessa vida funciona para o nosso próprio egoísmo e vaidade. E nesse dia outra idéia fixa, decorrente desta, pungente, tomou conta de minha alma e fez que eu enlouquecesse, por algum tempo.
A idéia era a seguinte: esta vida só vale a pena se vivermos para o outro, e é isto que é o amor em sua essência. Ajudar os outros, sem pedir nada em troca. Isto justificaria uma existência de paz, de iluminação. Não me peçam mais razões, quero simplesmente salientar que uma idéia tomou conta de mim e aqui narrar os enormes efeitos que produziu.
Fiquei tão possuído por tais pensamentos, que resolvi começar a agir naquele mesmo instante. Mãos à obra! Pensei: “quero ajudar, não importa onde, nem quem, nem como”. Continuei andando e não voltei pra casa, era muito trabalho a ser realizado por esse mundão a fora. Uma senhora carregava compras, parecia pesado. Ofereci-me para ajudá-la a levá-las em casa. Olhou-me bem desconfiada e surpresa. Mas diante de minha insistência e de minha aparência ingênua e naturalmente solícita, deixou que a acompanhasse até sua casa.
Depois dessa senhora, naquele mesmo dia, ajudei a empurrar um fusquinha velho, devo ter consolado umas duas ou três pessoas, gastei todo o meu dinheiro com jujubas, panos de prato, panos de chão, doces e quaisquer outras coisas que ambulantes vendessem nas ruas; cumprimentei muita gente e continuei andando. Quando dei por mim, estava a muitos quilômetros de casa e sem um tostão, morto de fome e sede, mas muito feliz. Feliz de um modo tão sereno e puro como nunca havia sentido.
O que fiz então? Comecei a esmolar, a pedir aqui e ali um trocado para inteirar na passagem do ônibus e para um marmitex. As pessoas, em princípio, mostravam-se bem assustadas, pois afinal eu não tinha a menor aparência de mendigo, pelo contrário. O dinheiro que consegui, comprei um lanche e nem pensei em voltar pra casa. Fiquei na rua até bem tarde e acabei dormindo no banco de uma praça. Acordei no dia seguinte com o canto dos pássaros, com a natureza brilhando sua vida pra mim como nunca. Eu era um homem realizado, feliz. Pensei, não volto nunca mais pra casa. Serei um andarilho, um mendigo, mas darei à minha vida o seu verdadeiro sentido e finalidade. Para que serve esta vida? Por que estamos aqui? Para isso, para amar o próximo, sem qualquer interesse, para ajudar os outros.
Continuei minhas andanças. Minha barba e cabelo cresceram. Arranjei uma escovinha de dente, uma mochilinha toda surrada e suja, um potinho pra comida, e sempre improvisava um cantinho para tomar um banho de vez em quando. Mas estar na rua o tempo todo é assim, não tem jeito, a gente fede mesmo. Mas eu nem percebia mais, estava feliz com a vidinha que levava, e orgulhoso de saber que aquele era meu destino, que tudo o que havia feito até ali não havia sido em vão, mas somente uma soma que levasse o caldo a entornar e fazer com que tivesse a visão divina do verdadeiro sentido da vida. Para muitos eu era somente um derrotado, um mendigo. Mas, para mim mesmo, eu era o máximo sendo o mínimo possível. Tive o mérito de poder me esquecer. Tirei férias de meu próprio ego.
Não sei o que aconteceu, mas o desapego de mim mesmo fez com que enfrentasse os maiores perigos, agressões e enfermidades com tanta serenidade que nem podia me reconhecer naquele corpo, naquele ser. Eu simplesmente era. Era sujo, fedido e repugnante, mas exalava luz, e as pessoas percebiam, pois onde quer que eu chegasse ofuscava o evento que ocorria: tudo parava e todos subitamente olhavam pra mim. Aliás, eu chamava muito a atenção, inclusive pelos sete vira-latas que sempre me acompanhavam.
Depois de um ano nesta vida divina e iluminada, estava andando, sempre sem saber para onde ir e, de repente, quando vejo, estava na rua de minha casa, em direção à ela. Para minha surpresa, minha mãe estava na porta do prédio, sentada num banco, fazendo tricô, de costas para a portaria, e não me viu. Andei instintivamente (como sempre) em sua direção. Passei por detrás dela e entrei no prédio. Devagarinho fui subindo as escadas e cheguei ao meu andar. Abri a porta. Fui até a cozinha. Nossa, que beleza, a geladeira estava cheia. Peguei tudo o que podia e fui para a sala. Em meia hora comi o que poderia ter comido o dia todo, como um rei, bem tranqüilo e recostado no sofá, assistindo televisão: “a serenidade é a minha morada”. Tendo já comido bastante, feito um leão, peguei uma toalha no varal e fui para o chuveiro.
Tomei um banho daqueles, como há muito tempo não o fazia. Cheguei à porta de meu quarto e tudo estava como antes: caminha arrumadinha, tudo cheiroso, limpinho, meu aparelho de som num canto. Exceto por um detalhe muito desagradável: Bife, meu cachorro, estava dormindo em minha cama. Nunca suportei e nem permiti isso. Culpa da minha mãe que não soube educá-lo. “Saia daqui, seu porco filho-da-mãe!”. Dei-lhe uma bofetada no traseiro e o bichinho percebeu rápido que o dono do pedaço estava de volta.
Botei uma roupa fresquinha, liguei o som e deitei na cama. Adormeci esplendidamente. Acordei cedinho e tudo em silêncio, tudo macio, cheiroso e fofo. “Ah, como é bom estar em casa novamente. Como é bom ter uma casa e uma família. Como é bom ter para onde voltar...”


3 comments:

Anonymous said...

Meio paradoxo esse texto hein! O cara se sente realizado sem ter pra onde ir... diz q leva uma vida boa na rua, tornou-se iluminado... e de repente deixa seu orgulho capitalista tomar conta de novo.... bem loco mesmo! hehe abração

Anonymous said...

Olá Adriano,
parabéns pelo texto e pelo prêmio!
Adorei esse "sentido pra vida"!
Quando tempos pra onde correr, pra onde voltar, temos corajem pra tudo! Fazemos isso sempre, transitamos entre vontades e rompantes de corajem que querem modificar o mundo como um adolescente.
Bom... Adorei!
Beijos

Anonymous said...

Show de bola esse texto!
Me deixou fixada na história, fiquei muito curiosa para saber onde esse personagem ia parar...hehe
Abraços!