Há meses, talvez anos, que eu vinha cruzando com uma pessoa no cotidiano e sempre tentando compreender porque era tão antipática, esquisita ou inconstante. Uma pessoa com quem nunca conversei, mas sempre nos cruzamos pelos cotidianos da vida, com cumprimentos de bom dia e boa tarde, por exemplo.
Outra vez tivemos uma interação bem breve e percebi que talvez não tenha gostado de algumas coisas que eu tenha falado ou deixado de falar. Seu ente querido se comportou de modo um pouco difícil em público, em uma reunião, e eu não o defendi. Somente tentei quebrar o gelo com uma piada inocente sobre seu comportamento.
Todos se riram, inclusive seu ente querido, e eu imaginei que a própria pessoa fosse rir também. Porque o clima era tenso e a piada não foi ofensiva. Somente tinha o objetivo de ajudar a quebrar o gelo e fazer com que todos os presentes se descontraíssem. Mas era seu ente querido e a minha impressão é que dali em diante ele passou a me classificar como um inimigo. Porque, nas idas e vindas do cotidiano, cruzava comigo e me cumprimentava com um olhar de ódio.
Seu ente querido é seu pai que, por sua vez, continuou a interagir comigo com muita afabilidade. Sempre tivemos uma interação muito afável e aquela brincadeira inocente não alterou em nada o modo como nos relacionamos. Esse jovem, contudo, parece ter pegado asco de minha pessoa.
E assim se passaram uns dois anos mais ou menos. Cruzava com ele e sentia o peso de seu olhar, com o ato de me cumprimentar somente quando eu tomava a iniciativa. Se eu não o cumprimentasse, ele não retribuia. E a retribuição era sempre muito carregada de comportamentos não-verbais desagradáveis.
Até que há poucos dias tudo se iluminou. Dei-lhe bom dia, ele retribuiu e fez um comentário totalmente fora da realidade.
- E aí, tudo bem com você? - me perguntou, com um ritmo e um tom de voz alterados, um pouco mais fortes, pouco adequados para uma interação tão simples.
- Tudo bem e você? - respondi-lhe, com um tom de voz suave, tentando ser amigável e acolhedor.
- Você tá fortão, hein?
- Não. Pelo contrário. Eu estou muito magro...
- Não. Você tá bem forte sim, cara. Você é musculoso.
Não houve tempo para estender a interlocução e não tive condições de avaliar melhor quem era aquela pessoa, aquele jovem. Mas fiquei um pouco estupefato em perceber que não era nada daquilo que eu vinha pensando, durante meses. Depois inclusive debater um pouco o caso com outra pessoa, que também o conhece do mesmo modo, superficialmente, somente pelas idas e vindas rápidas do cotidiano. E uma coisa ficou clara. É na verdade uma pessoa muito diferente, para a qual o mundo e as pessoas, de modo geral, são uma dificuldade imensa. É alguém que se sente um completo estranho nisso tudo, nessa vida difícil. E eu penso que já até existe um termo técnico para isso. Esse jovem é neurodivergente, com todas suas imensas dificuldades e estranhezas nas interações com os outros.
O que antes para mim era caracterizado por uma interação antipática, áspera e até despertando em mim mesmo sentimentos aversivos, com julgamentos morais, se esfacelou no ar, na compreensão de que eu estava diante de uma pessoa com sérias limitações.
Acho que minha antipatia cedeu lugar à compaixão.