Não é psicose. Não era psicose. Geralmente não é loucura. Aí fora no mundão, fora das unidades de saúde, fora dos CAPS da vida e dos hospitais psiquiátricos, geralmente há muito mais gente doida do que a gente imagina. E quando digo "doido", estou me referindo ao seu uso mesmo de senso comum, que é mais uma figura de linguagem ou um exagero em relação a qualquer atitude desmedida que alguém possa ter em determinado contexto.
Sim, as pessoas de modo geral são mais doidas do que a gente imagina. Porque "de perto ninguém é normal", como já dizia Caetano Veloso. E obviamente sabemos que o problema não é esse. O problema é perceberem, de longe, que não somos normais. Porque de perto ninguém é normal mesmo. Todos temos nossas desmedidas, nossas pequenas loucuras e estranhezas, que são geralmente expressas na intimidade. Porém, quando percebem, de longe, que não somos normais, é exatamente aí que começa o estigma, o preconceito, a discriminação.
Nesse ponto não há mais como se falar que de médico e louco todos temos um pouco. Porque esse "um pouco" não classifica ninguém exatamente como médico ou louco. Quem não é médico continua a não sê-lo. E o mesmo vale para quem não é louco. Os loucos continuam sendo loucos. E nós, que não somos assim classificados, não passaremos a sê-lo.
Então, retificando: de longe alguns não são normais, e esses enfrentam o horror do olhar de todos aqueles que são.
Gabriel (nome fictício) entrou no consultório acompanhado de sua irmã.
- Ele precisa encostar – disse ela.
- Eu nunca gostei de viver. Só não me matei ainda porque ainda não encontrei um meio eficaz – prosseguiu ele.
- Acho que ele tem de se aposentar... – completou ela.
Ela somente falava em atestado e aposentadoria. Seu objetivo principal parecia ser a aposentadoria de seu irmão e isso, infelizmente, logo no início de seu primeiro atendimento comigo, em um de seus primeiros atendimentos no CAPS, não era um bom indício. Confesso que senti um certo incômodo, que procurei dissipar com uma orientação básica e sucinta:
- Compreendo a angústia da família com o sofrimento pelo qual Gabriel está passando e todas as limitações impostas por sua condição de adoecimento. Porém devo informar que a prioridade agora é acolher e conhecer melhor Gabriel, para podermos ajudá-lo da melhor forma possível. Para tanto é provável que em seu próximo atendimento, com o médico, Gabriel seja afastado do trabalho por alguns dias para descansar e se cuidar, para que possamos, junto com ele, cuidar melhor de sua saúde.
Após essa orientação sua irmã se acalmou um pouco e permitiu que Gabriel falasse.
No início de sua fala senti que talvez ele sua irmã estivessem ambos simulando alguma condição patológica com o objetivo de conseguirem algum benefício do governo. Por mais inacreditável que pareça, isso não é incomum. Não faltam em um CAPS paciente que, até juntamente com seus familiares, simulam ou exagerem sua condição e sofrimento com o objetivo de “encostar”, como dizem.
Isso não quer dizer que muitas, talvez a maioria dessas pessoas, não esteja sofrendo. Muitas padecem com sintomas de ansiedade e depressão e sentem que os caminhos mais rápidos e simples para o alívio de sua dor seriam um remédio mágico e a aposentadoria, que perfazem uma espécie fórmula perfeita para o fim de todos os seus males.
Isso é facilmente atestado pela grande quantidade de falas comuns que se acumulam acerca da felicidade, com inúmeras pessoas a dizer que bastava ganhar na loteria ou que simplesmente seriam felizes se tivessem mais dinheiro. A literatura científica mostra que isso é um fato quando alguém sai da linha da miséria, quando sai de uma condição na qual não tem o mínimo necessário e se transfere a um patamar financeiro mais elevado, no qual pode usufruir do mínimo para recuperar sua saúde.
Se uma pessoa está doente e o dinheiro pode lhe prover tratamentos mais adequados, a tendência é que ela fique mais feliz com mais dinheiro. Contudo o fator financeiro não pode ser alçado à única condição para uma saúde melhor. Se assim o fosse, gente rica não ficaria doente e nem teria ansiedade ou depressão.
Gente rica que só come porcaria, não tem hora para dormir ou acordar, passa o dia dentro do conforto do ar-condicionado de seu quarto, no escuro, assistindo porcaria na televisão, tenderá a ficar doente e tem muito mais chances de ter transtornos de ansiedade ou depressão.
Então mais dinheiro pode ajudar sim. Mas essa ideia não cabe em qualquer contexto. Se, por exemplo, o sujeito vive em um país na qual a saúde é toda privatizada e não tem acesso gratuito a acompanhamento básico de saúde. Diante do primeiro problema é óbvio que dinheiro fará toda a diferença. Mas sabemos muito bem que a saúde, como um todo, depende via-de-regra de alimentação balanceada, atividade física regular, higiene do sono, suporte sócio-afetivo e regime luminoso adequado. Esse conjunto de fatores em boa medida determinará quem terá saúde e quem não terá. Se o sujeito é atleta, no auge de sua forma física, tendo sono preservado, luminosidade e alimentação adequadas, mas não tem suporte sócio-afetivo durante um tempo considerável, é provável que tenha sintomas de ansiedade e depressão. É provável que adoeça.
E o que significa não ter suporte sócio-afetivo? Significa aquele sujeito não ter o mínimo necessário para ele. E alguém pode até objetar: “Cada um é um. O que é necessário para um pode não ser para outro”.
Mas as oscilações não são tão individuais. A grande maioria das pessoas morrerá após 4 dias sem água. Alguns perecerão antes, em dois dias. Outros talvez resistam durante 4 dias. Porém, após 4 dias são raríssimas as pessoas que sobrevivem.
O mesmo vale para fatores como o suporte sócio-afetivo. A tendência de praticamente todas as pessoas é adoecer quando submetidas a assédio e isolamento social. Hostilização social adoece. Bullying adoece. Pessoas solitárias tendem a adoecer com mais frequência e morrem mais precocemente do que pessoas menos solitárias, que têm suporte sócio-afetivo. Solteiros adoecem com mais frequência e morrem mais cedo do que pessoas casadas.
Ninguém é feliz ou sadio se estiver isolado, sozinho numa cela ou num quarto escuro, por mais que se alimente de modo adequado e faça atividade física regular.
- Eu nunca fui feliz. Sempre quis morrer. Tenho medo de perder meu emprego. Não fui trabalhar hoje. Preciso de afastamento do trabalho...
- Ele precisa se afastar e precisamos de relatório para o INSS – completa a irmã.
- Você toma remédios psiquiátricos? – perguntei-lhe
- Já tomei, muitas vezes, durante muito tempo. Mas nunca foram eficazes para tirar essa tristeza do meu coração.
- Quando você começou a tomar medicamentos psiquiátricos?
- Quando eu tinha 17 anos fui sozinho no Hospital São Vicente [hospital psiquiátrico] procurar por atendimento, por ajuda. Eu vivia triste e queria algum tipo de ajuda. Lá tive uma consulta e a médica me receitou amitriptilina. Eu gostava desse remédio. Ele me deixava menos triste e me ajudava a dormir melhor. Mas depois de dois anos eu passei por uma tristeza tão grande que tentei me matar tomando uns 80 comprimidos de um monte de remédio psiquiátrico diferente. Correram comigo pro hospital, fizeram lavagem estomacal e meu cérebro ficou bastante bagunçado depois disso. Porque eram muitos remédios diferentes e numa quantidade grande. E é foi aí que ele começou a aparecer pra mim em sonhos e também durante o dia.
- Ele quem?
- Saicema. O nome dele é Saicema. É assim que ele se apresenta. Ele vem aparecendo para mim, tanto em sonho como quando eu estou acordado faz mais de 20 anos. Ele vive me atazanando e me aterrorizando. Tem dia que ele não deixa eu dormir e fica atrás de mim o tempo todo sussurrando coisas horríveis em meus ouvidos, dizendo para eu me matar.
- Então ele é real. Ele existe mesmo...
- Não. Eu sei que ele não é real. Eu sei que tudo isso é uma invenção da minha cabeça, do meu cérebro. Mas ele me incomoda demais. É uma tortura. Eu tomo vodka todos os dias para diminuir essa fala e essa aparição constante dele.
Não é psicose. Foi o que ficou claro para mim logo após essa fala de Gabriel. As pessoas podem cometer atos extremos e serem vítimas de profusas e intensas alucinações e mesmo assim não serem psicóticas.
As psicoses são as loucuras clássicas. Seu sintoma central é o delírio, que é uma ideia equivocada e patológica. Nem toda pessoa extremamente ciumenta, que vê infidelidade onde ela não existe, está com delírios de ciúme. Nem toda pessoa que pensa equivocadamente que está sendo perseguida tem delírios de perseguição.
Para ser delírio é necessário que o equívoco tome por completo a vida da pessoa, se relacionando com tudo o que ela pensa e faz, tenha algumas características aberrantes e bizarras e seja completamente associal. Ter um ciúme doentio é diferente de ter um ciúme enlouquecido. Se o ciumento pensa que seu cônjuge está traindo-o com o cachorro da vizinha, que é na verdade um espião da CIA, eis o delírio.
E Gabriel também padecia de ausências. Quando ficava muito nervoso ou estressado, por vezes entrava em crise e ficava irreconhecível. Perdi por completo sua gentileza usual. Xingava, proferia palavrões, corria descontroladamente para as ruas e tentava se jogar para debaixo de algum carro que passava. Era muito querido por todos, porque era sempre polido e solícito. Suas crises, porém, pareciam transformá-lo em outra pessoa.
- Acho que tenho duas personalidades...
“Tem nada, papo furado”, eu pensava, sem muito hesitação. Porque é pouco provável que isso exista assim, nesses termos cinematográficos. Parece-me mais com uma desculpa perfeita para quaisquer arroubos e um passe-livre para uma série de abusos.
“Sou doente!”, poderiam assim alegar os abusadores, que certamente não são loucos.
Gabriel, por sua vez, comportava-se como se tivesse enlouquecido e jamais perdia o afeto de todos que o amavam. “Médico e monstro”. Homem médio e monstro. O contraste absoluto entre uma pretensa personalidade e outra e a quase rara sazonalidade de suas crises eram o passaporte para seu perdão eterno.