Alguns usuários frequentam o serviço diariamente. E a maioria desses, que assim se comportam, estão entre os casos mais extremos ou severos. Farofa, 55 anos de idade, é um deles.
- Todo mundo chama você de Farofa. Mas eu gostaria de saber como você gostaria de ser chamado, porque seu nome é José.
- Pra mim tanto faz. Eu gosto de ser chamado de Farofa.
Então passou a ser Farofa para todo mundo. Todo mundo o chama por esse apelido, e ele sempre foi um dos mascotes do CAPS. 55 anos de idade, mas com uma série de comportamentos pueris que despertam afeição e uma interação como se fosse a de uma família, como a interação que uma família tem com seus filhos, com suas crianças. Farofa muitas vezes apronta as suas, faz arte e é chamado à atenção, mas também, nessa convivência, são produzidos momentos memoráveis e encantadores.
Sempre chega ao CAPS, cumprimenta todo mundo, abre as portas dos consultórios para comunicar alguma coisa, dar um bom dia ou mostrar que ele está ali, que gostaria de interagir, ter atenção ou alguma forma de carinho por parte dos membros da equipe.
Ele costuma ter um comportamento muitas vezes invasivo que, além de invadir consultórios enquanto estamos atendendo outros pacientes, pede por abraços e um contato físico mais próximo, corpo a corpo, e isso acaba sendo um pouco incômodo para boa parte das pessoas, que não se sentem confortáveis ou estão no momento com disposição para aquele nível de intimidade ou proximidade corporal.
Certa vez se aproximou por trás de Jorge, um de nossos colegas de equipe, enfermeiro, sem que ele percebesse, e soltou um peteleco em sua orelha. Jorge se assustou, ficou desnorteado e inevitavelmente irritado. Sua primeira reação foi o sobressalto e gritar um bom de um palavrão:
- Phutta que phariu! Charalio, Farofa! Que phoha foi essa?
Talvez tenha até segurado Farofa pelo braço ou pelo pescoço, deixando claro que ele não poderia mais fazer aquilo.
- Não brinque assim! Você nunca mais faça isso comigo! Você ouviu?
Depois pediu desculpas a Farofa. Justificou para a equipe que tinha se exaltado, mas que seu espaço vital tinha sido invadido, e que ele tinha sofrido uma agressão, apesar de Farofa ter interpretado que aquilo era somente uma brincadeira inocente.
Noutro dia, dentro do banheiro, Farofa fez algo parecido, invadindo também a intimidade ou algum espaço vital de Ítalo, o vigilante, que naquele momento estava inclusive às pressas para chegar logo ao vaso sanitário, pois precisava urgentemente fazer suas necessidades.
- Farofa! Assim não! Pelo amor de Deus!
Nesse contexto acabou contendo um pouco o comportamento exacerbado e inquieto de Farofa, ao ponto talvez de tê-lo empurrado, com a mão em seu ombro ou em seu peito.
Alguns minutos depois eu saía da copa e Farofa, sentado confortavelmente em uma poltrona, daquelas reclináveis, de hospital, me chamou. Não se levantou, não foi até mim. Queria que eu fosse até ele.
- Adriano! Vem aqui, por favor!
- Por que você não vem aqui, Farofa?
- Não, vem aqui você, por favor. Eu tô descansando e você já tá em pé. Pra você é mais fácil. Vem aqui, por favor...
Eu já estava indo embora, mas voltei. Caminhei uns 15 ou 20 metros e cheguei até ele.
- Você está um pouco folgadinho, não acha? Quer tudo na mão. Quer que eu vá até você. Não vem até a gente. Fica sentadinho, esperando, no conforto... O que você quer?
- O Ítalo deu um soco no meu peito e machucou meu coração. Eu tô com o coração doendo aqui, viu...
- Quando foi isso? Aonde?
- Foi agorinha. Foi ali no banheiro. Ele ainda tá lá. Ele tá lá. Tá lá cagando.
Como o banheiro era bem de frente, caminhei até lá e já encontrei Ítalo lavando as mãos.
- Rapaz, o que que aconteceu? Farofa falou que você deu um soco nele.
- Não, eu não dei soco nenhum. Eu somente tentei afastar ele, que ele ficou aqui se esfregando em mim, passando a rola em mim. Assim não dá.
- Farofa, vem cá! Já entendi sua situação e percebo que você tem uma grave acusação contra o Ítalo. Vamos agora na chefe!
A supervisora do CAPS estava uns 15 ou 20 metros à nossa frente, caminhando em direção à sua sala. Andamos mais rápido e chegamos até ela.
- Daniela, o Farofa tem uma acusação grave para fazer contra o Ítalo.
- O que foi que aconteceu?
- Ele falou que o Ítalo tava cagando.
Ela entendeu a piada e começou a rir. Farofa também ria, mas não sabia se ria ou se continuava fazendo a acusação de que havia sido agredido.
- Não foi isso não. Ele tava cagando sim. Mas antes dele ir lá fazer cocô, ele me deu um soco no peito e machucou meu coração.
- E você ficou de coração partido Farofa? É isso? - completou ela, sorrindo para ele, carinhosamente...
- Tentou agarrar o Ítalo, não foi correspondido, e ficou de coração partido. Não é, Farofinha? - emendei.
Seu olhar agora era mais tranquilo e terno. Mas a dor, no coração, persistia.
Minutos depois, quando eu já me arrumava para bater meu ponto e ir embora, de vez, estava lá ele, novamente, agora em cima de mim, invadindo também meu espaço vital, me segurando pelos braços e xeretando nos bolsos de minha mochila.
- Vem cá, Farofa. Vem cá. Toma aqui meu crachá. Ele agora é teu. Vai lá. Vai lá bater o ponto de saída pra mim!
Botou o crachá no pescoço e foi até o relógio de ponto. Apareceu o sinal para a digital, mas não funcionava. Seu dedo enorme não era o meu. Tentou novamente. Apareceu o sinal para a digital e eu assim coloquei a minha digital e, com sua ajuda, bati o meu ponto de saída.
Alguém o fotografou, batendo o ponto de saída para mim, e compartilhou no grupo virtual de mensagens instantâneas. E assim vão se eternizando algumas imagens e memórias de uma instituição projetada, plantada para floresecer das mais variadas dores e sofrimentos humanos, com amor para todos os lados.