A vida é assim. Às vezes
ela bate mais forte, e repetidamente, ao ponto de pensarmos que estamos
atravessando uma onda de azar ou que somos mesmo, por natureza, dotados de bem
pouca sorte.
Em 1985, o pior ano de
minha vida, aos 12 anos, eu estava, juntamente com uns 20 colegas, debaixo de
uma grande marquise, na escola, esperando a tempestade passar.
Estava fascinado com o
poder dos ventos, arrancando as folhas e os galhos das árvores, quase
derrubando algumas delas, e mal tinha ideia de que aquele poder poderia se
voltar contra nós.
Foi tudo muito rápido.
Ouvimos um estrondo muito forte, e de repente a marquise, sob a qual estávamos,
explodiu em vários pedaços. Era composta por telhas enormes, creio inclusive
que as maiores que existem, quando se fala em amianto.
O vento havia arrancado
uma dessas telhas, que desabou sobre a telha acima de nós. Vários pedaços de
telha voaram e desabaram sobre aqueles 20 e poucos adolescentes e pré-adolescentes
que ali estavam. Todos tentaram se proteger e, assim que puderam, correram para
um lugar mais seguro. Minha cabeça doía. Alguma coisa havia caído em cima de
mim.
Olhei para as minhas
mãos. Elas estavam encharcadas de sangue. Eu nunca havia tido contato com tanto
sangue. Escorria pelo meu rosto. Eu estava num banho de sangue. Ao me ver,
algumas adolescentes se assustaram, e saíram gritando, desesperadas. Isso foi
suficiente para que eu também entrasse em desespero, e também saísse gritando.
Para minha sorte fora
somente um corte superficial no couro cabeludo, que havia rompido alguns
profusos vasos sanguíneos.
Infelizmente, após o
ocorrido, fiquei traumatizado com tempestades de ventos fortes.
Libertei-me somente mais
de dois anos depois, quando era office-boy no aeroclube de Ribeirão Preto. Fui
encarregado de fazer uma entrega, e do lado de fora as árvores já se balançavam
bastante com os ventos, que anunciavam chuva.
Depois de uma coleção
imensa de vexames, em virtude de várias vezes ter me desesperado com ventos um
pouco mais fortes, se eu dissesse à minha chefe que eu não iria, porque estava
com medo da chuva, seria mais uma humilhação para essa coleção, que ainda não
havia sido revelada naquele ambiente de trabalho.
Senti que a humilhação seria
mais dolorosa do que sair no meio da tempestade, e foi o que fiz. Foi
libertador. Meu sentimento era o de que eu tinha me livrado de uma carga enorme
e superado uma parte bem difícil do meu passado recente. Eu sentia que para
alguém da minha idade, dois anos e meio com medo de alguma coisa era tempo
demais.
Mas, retornando ainda
para 1985, cerca de 2 ou 3 meses após o acidente da tempestade, eu estava
novamente na mesma aula de Educação Física, com o mesmo professor (que se
chamava Zoroastro), participando do futebol, na quadra. Ele observava os
estudantes jogando, de longe, a uns 50 metros, conversando com alguma outra
pessoa, talvez um outro professor.
- Mas veja esse menino
aí, que tá correndo com a bola. Ele foi o único que se machucou, e ficou todo ensanguentado.
Azarado esse moleque, hein!
Instantaneamente após a
sua fala eu, que era o menino com a bola, fui empurrado por um colega, sendo
lançado para fora da quadra, para cair sobre um piso de concreto, de reboco
grosso, bastante áspero. Levantei-me imediatamente e meus dois joelhos
sangravam.
- Pelo amor de Deus! Não
é possível! Foi só eu falar que o moleque é azarado e logo em seguida ele se
arrebenta? - completou Zoroastro, surpreso.
- Adriano, você não vai
acreditar! O professor tava ali falando que você é azarado, e você caiu
exatamente no momento em que ele tava falando isso... - diziam alguns de meus
colegas.
Esses fatos, associados
a uma série de outros, fez com que meu irmão mais novo, nessa mesma época, me
desse o apelido de Uruca, que é um personagem de desenho animado, caracterizado
por ser bastante azarado.
1985 e 1986 foram anos
muito difíceis para mim, os quais considero como os mais sofridos que já tive
em toda a minha vida. E não foram sofridos porque eu era pessimista, ou me
considerava azarado, como muitos inclusive fizeram para que eu assim me
sentisse. Foram anos muito sofridos devido a uma série de eventos adversos.
Se fui azarado ou não,
se sou azarado ou não, é algo sobre o qual nem penso muito, porque o excesso de
sentidos pode aumentar o próprio sofrimento. Prefiro ir assimilando a ordem dos
eventos, por mais infelizes que sejam, de modo a me manter sereno e tentar
resolvê-los.
O problema é que muitas
vezes, sem percebermos, nos desesperamos e adentramos ritmos frenéticos, que
também acabam por gerar estresse e mais sofrimento.
Quando eventos ruins se
repetem e se acumulam, é inevitável o sentimento de angústia e de falta de
alternativas. Isso pode se acumular, de modo bastante pesado, durante meses, e
fazer com que uma pessoa se sinta completamente infeliz, ou que sua qualidade
de vida e sua saúde se deteriorem gradativamente.
Hoje, pela manhã, eu
estava mais ou menos assim. Devido a uma série de fatores, os quais não cabe
aqui detalhar. Tive uma noite difícil e com pouco sono. Ao acordar, percebi que
seria um desafio grande conseguir chegar, sem muito atraso, ao local de
trabalho, porque durante toda a noite, e logo ao acordar, enfrentei uma série
de dificuldades, que estavam me fazendo pensar uma única coisa, a qual já venho
pensando há um tempo, quando uma sucessão de eventos ruins me acomete:
- Só pode ser pegadinha!
Não é possível! É muita coisa errada, uma atrás da outra, e muralhas imensas de
dificuldades a serem superadas...
De repente me percebi
construindo uma nova regra para mim mesmo, para poder me consolar um pouco mais
em relação a uma série de dificuldades e eventos ruins dessa vida. E essa nova
regra pode ser resumida na seguinte expressão: "Isso é pegadinha!".
Essa regra remete ao
pensamento de que vivemos em uma simulação de computador, controlada por
algoritmos, que podem ter adquirido vida própria, ou por seres que nos
controlam, ou que estamos sob o domínio de algum ser, mais onisciente do que
nós que, por recursos superiores aos nossos, nos controla.
E se a maioria dos seres
sencientes desse planeta vive uma vida sofrida, miserável, podemos inclusive
pensar que essas entidades, ou esse ser, estão o tempo todo nos sacaneando,
fazendo pegadinha com muitos de nós, aqui e ali.
Essa minha regrinha, por
princípio também dotada de irracionalidade e pensamento mágico, estava me
ajudando a me comportar de modo um pouco mais sereno. Se é tudo uma grande
pegadinha, as coisas são inevitavelmente difíceis e repletas de maldades
deliberadas para conosco. Então o jogo é esse mesmo, e não faz sentido se
apressar demais ou se desesperar, pois tudo ocorrerá a seu tempo, e a pressa
raramente surtirá algum benefício nos desesperos e nas correrias do mundo.
Peguei minha bicicleta e
novamente, como faço há mais de 6 anos, peguei o mesmo caminho em direção ao trabalho.
Um caminho pelo qual já devo ter passado mais de mil vezes.
"Não há porque se
apressar nem se desesperar. Tudo ocorrerá a seu tempo. Não há porque se
envolver demais com as dores alheias, e nem se desesperar para que as coisas se
resolvam mais rapidamente ou de forma mais prática. O que terá de ser será,
porque tudo é uma grande covardia, sadismo e sacanagem mesmo. Quem nos controla
ou quem criou esse algoritmo é um tremendo de um filho da phutta."
A cabeça estava
atribulada, mas dentro de toda a atribulação, eu agora conseguia me sentir
razoavelmente sereno enquanto pedalava.
Todo e qualquer percurso
que alguém faça de bicicleta possui trechos mais perigosos. Foi tudo muito
rápido, e de repente havia um carro que vinha em minha direção e ia me
atropelar. Estávamos em direções opostas e as velocidades se somariam, em um
atropelamento ou acidente de trânsito como eu nunca havia vivenciado antes.
Tentei desviar e freiei
com todas as minhas forças. Por sorte não houve o choque. O carro deve ter
derrapado, freado ou desviado bruscamente. Mas eu não me salvei por completo.
Minha tentativa de desviar, freando bruscamente, fez com que eu capotasse. Fui
para o chão, com a bicicleta talvez por cima de mim.
Não sei se é um mau
hábito, mas sempre que dou uma topada com a perna ou o pé em algum móvel, solto
imediatamente alguns palavrões, e nesse tombo não foi diferente.
Eu estava no chão, de
bruços, com uma das pernas presa na bicicleta, sem conseguir me levantar, sem
conseguir me virar, e professando alguns palavrões. A quase colisão ocorreu com
um carro de passeio. Eu estava exatamente na entrada do corpo de bombeiros da
cidade onde moro. Esse carro pertencia a um soldado ou oficial desse batalhão.
- Pare para de xingar,
rapaz! - foi o que ele me disse, como se fosse um comando a um de seus
soldados.
Parei de xingar, e
continuei no chão, de bruços, sem conseguir me virar, somente resmungando que
minha perna estava presa na bicicleta, e que daquele modo eu simplesmente não
conseguia me levantar.
Chegou outro bombeiro.
Os dois tiraram meu tênis, e conseguiram soltar minha perna da bicicleta. Fui
devidamente examinado e me fizeram algumas perguntas, para saber qual era meu
estado. Eu estava quase que completamente anestesiado. Uma série de substâncias
devem ter se produzido em meu corpo, ao ponto de fazer eu me sentir um pouco
fora de mim e sem qualquer tipo de dor em parte alguma.
Logo eu estava de pé,
calçado e nem sei exatamente quem vestiu o tênis em meu pé. O banco da
bicicleta estava completamente torto e na força eles colocaram-no no lugar.
Apertei-lhes as mãos, agradeci e lhes pedi desculpas pelos xingamentos.
- Bote deus no teu coração,
e pare de xingar – completou o bombeiro.
Caminhei 50 metros, até
a faixa de pedestres, e atravessei-a no meu tempo, que estava quase parado, com
tudo passando muito devagar. Eu sempre atravesso a faixa de pedestres o mais rápido
possível, para não incomodar nenhum motorista. Mas dessa vez não fiz questão
alguma de colaborar com quem me esperava.
Cerca de 50 metros
depois havia outra faixa, da pista contrária. Continuei caminhando, em passo
lento, cambaleante e agora já com algumas lágrimas no rosto.
É inevitável que esse
tipo de acidente gere alguns ferimentos em carne viva e até fraturas. Por sorte
não tive nenhuma fratura, mas uma coisa irá sempre inflamar: o ombro que
machuquei em uma queda de moto, há quase 30 anos.
Resultado: dois dias de
atestado, curativo no ferimento do cotovelo e anti-inflamatórios para o ombro
esquerdo. Mas continuo sereno e sem desespero, porque é tudo pegadinha.