Já recebi pacientes com obsessões em relação ao diabo e ao inferno. São pessoas religiosas, ou que tiveram uma educação religiosa mais intensa, e não tiveram oportunidades para se expor de modo mais consistente a esses estímulos, para que assim pudessem se dessensibilizar.
E também não foram consistentemente expostas a outras fontes de influência, a pessoas que possuem crenças diferentes das delas.
Com aqueles que tinham medo do diabo, eu costumava convidá-los para uma exposição mais contundente. Porque a inundação de estímulos é possível quando a estimulação aversiva simplesmente não tem a capacidade de extrapolar os limiares do próprio paciente.
A inundação de estímulos, para quem não sabe, é um método arriscado de dessensibilização, cuja exposição é efetuada de modo contundente, e geralmente de uma única vez.
Seria mais ou menos como convidar um paciente que tem medo de altura para, de uma hora para outra, saltar de bungee jumping ou de paraquedas.
É um método geralmente contrarrecomendado, por ser muito arriscado. A pessoa submetida a uma inundação de estímulos pode ser acometida por intensas respostas emocionais, que podem fazer com que ela simplesmente não se exponha à experiência, devido a uma perda de consciência, por exemplo. Ou então fazer com que ela fique ainda mais sensibilizada para com aquilo que tem medo. Pode então piorar tudo, porque a pessoa pode ficar ainda mais sensibilizada, traumatizada.
Então o mais recomendável é que a exposição seja gradual, e que assim a pessoa, que vem sofrendo com alguns medos, vá paulatinamente se dessensibilizando à estimulação aversiva.
Alguns pacientes que chegaram até mim com obsessões e medo do diabo puderam, com certa facilidade, ser expostos e dessensibilizados de uma única vez.
Com sua autorização, e inspiração em uma história Zen, que ouvi há muitos anos, eu chamava o coisa ruim.
"Diabo, belzebu, capeta, demônio, lúcifer...” – eu utilizava todos os seus nomes e designações possíveis. "Eu, Adriano Facioli e o Sr. Fulano de Tal [o nome completo também do paciente] estamos aqui, no planeta Terra, na América do Sul, no Brasil” - enfim, endereço completo e todos os dados necessários, para que a entidade sobrenatural pudesse nos encontrar com facilidade; “venha até nós, apareça e comprove sua existência!”.
E esse era o momento máximo de tensão, de ansiedade, para esses pacientes, o qual durava talvez poucos segundos.
Eu inclusive insistia em chamar e desafiar essa entidade, pedindo para que ela me matasse imediatamente com um raio, fazendo parar meu coração ou qualquer coisa parecida.
Alguns minutos ou segundos se passavam, e nada acontecia, por mais que eu insistisse. E isso ia fazendo com que o paciente ficasse mais tranquilo e relaxado. Esse era simplesmente um teste de realidade, com uma exposição abrupta a estímulos que, em si mesmos, não têm nada de aversivos. Porque quando entramos em contato com eles, de fato nada se produz na realidade.
E essa é uma das regras da aprendizagem. A exposição repetida a determinados estímulos, que não causam nenhum dano maior, que não ultrapassam os limiares do paciente, ou que de fato não impliquem em nenhum malefício à sua integridade física e psicológica, acaba por fazer com que esses estímulos diminuam ou percam sua propriedade aversiva. Esta é a habituação, uma das formas mais primárias de aprendizagem.
E quando os estímulos perdem sua força aversiva, eles deixam de se configurar como obsessões. A pessoa simplesmente para de pensar nisso. Isso para de invadi-la. Os pensamentos intrusivos deixam de existir.
Porém, certa vez atendi um caso com algumas peculiaridades, que impunham um nível de dificuldade talvez um pouco maior.
O paciente padecia de obsessões, de pensamentos intrusivos, de que ele estaria blasfemando contra o Espírito Santo.
Não havia como fazer um teste de realidade como eu já havia feito antes com os pacientes que tinham medo do diabo. Porque, naquele contexto específico, não fazia o menor sentido chamar o Espírito Santo, para se provar ou não sua existência. Porque a ameaça não era do Espírito Santo, mas a de não ocorrer a salvação após a morte.
Chamar o Espírito Santo, para que ele comprovasse sua própria existência, já era entendido como blasfêmia. Era entendido como uma espécie de desafio ou afronta, de desamor, de desrespeito, ao Espírito Santo e a Deus.
Fora o fato de que, para os crentes, não faz o menor sentido buscar por provas objetivas da existência de Deus ou do Espírito Santo, porque senão não haveria motivo para se ter fé. Então, para quem acredita, para os teístas, Deus jamais ou muito raramente irá se manifestar de forma pessoal e clara.
De repente me vi diante de uma situação muito complicada para um trabalho em um único momento de orientação psicológica. Não era uma psicoterapia. Não havia tempo ou oportunidade para isso.
Se fosse uma psicoterapia, com várias sessões, eu iria aos poucos estimulando esse paciente a encontrar novos contatos e amizades fora de sua igreja. Porque assim, talvez, iria aos poucos sofrer a influência de outras pessoas, com concepções e crenças diferentes das suas, as quais poderiam, em boa medida, ajudar a amenizar seu quadro de obsessões.
A situação, porém, era bem dramática. Esse paciente praticamente não convivia com pessoas de fora da igreja. E conviver com pessoas de outras crenças era também concebido como pecado imperdoável.
Quando trabalhamos com exposição a estímulos aversivos, temos o pressuposto de que as coisas ocorrem somente nesse mundo. Não há a ideia de que qualquer mínima exposição implique em uma condenação eterna em um plano transcendente.
Esse paciente estava então cercado, blindado. As regras eram muito rígidas e os controles intensos. Era monitorado constantemente por seus pares.
Quando até pensar é pecado, e o castigo é a danação eterna (irreversível) e sem alívio, tudo fica muito difícil.
Diante de todas essas dificuldades, tentei uma última alternativa, na tentativa de produzir algumas novas regras possíveis:
- Se a condição para o perdão é o arrependimento, não se esqueça de que você está se mostrando profundamente arrependido de cada um desses pensamentos que você não consegue controlar. Teu arrependimento está dado, é também uma regra e é anterior à ocorrência desses pensamentos. Seu arrependimento é genuíno. Logo, o perdão está dado.
- Mas como faço para esses pensamentos irem embora?
- Não conseguimos fazer qualquer tipo de exposição ao objeto do qual você tem medo, que seria o inferno, dada a tua crença de que ele somente existe após a morte. Mas uma coisa que alguns achados científicos também nos mostram é que quanto mais lutarmos contra os pensamentos intrusivos, mais tempo eles levarão para deixar de nos infernizar. E aí então é melhor deixar que eles aconteçam, porque a sua força aversiva irá diminuir com a repetição, e perdoado você já está...
Até hoje não sei o que sucedeu com esse paciente, porque foi somente um único encontro, e não havia praticamente qualquer possibilidade de exposição mínima.
Essa interação, com esse paciente, somente me fez pensar que a ideia de que existe tortura eterna, de que existe danação eterna e sem alívio, é uma ideia psicopática, coisa de torturadores de almas inocentes.
Se o inferno existe, nada tem valor. Esta vida perde o valor, e tudo o mais também. A crença de que existe um mal eterno não permite a noção de finitude, de descanso, de redenção.
Não consigo imaginar chantagem mais cruel. A patética ideia de que existe inferno é extremamente valiosa nas mãos de líderes psicopáticos. Fazem o que querem, e torturam constantemente quem acredita nesse tipo de sandice.
E, infelizmente, há realmente pessoas que acreditam na existência do inferno. São uma minoria dos crentes que, na prática, acreditam de fato no inferno. Mas eles existem, são reféns eternos, e sofrem o diabo. Muitas dessas pessoas, assim como esse paciente que atendi, são profundamente adoecidas em função disso.
É bizarro imaginar que existem pessoas em sofrimento extremo em função desse tipo chantagem. O fanatismo religioso é uma prisão solidamente cercada. Quase ninguém sai.
E é também dramático perceber as reações de pessoas fanáticas ou manipuladoras, que pouco sofrem com isso. Cheguei a ouvir de alguns crentes que o sofrimento, com o medo do inferno, só existe nas pessoas que não se sentem merecedoras do paraíso.
Esse tipo de pensamento não é muito diferente daquele das pessoas que dizem que irão dormir tranquilas, porque estão com a consciência limpa. Ou o famigerado "Quem não deve não teme".
O problema é que consciência limpa não define caráter. Porque
a consciência dos canalhas está sempre limpa.
Então a crença no inferno, para muitas pessoas, somente multiplica a miséria de se acreditar em algo bizarramente implausível, e que é um instrumento valioso nas mãos de canalhas manipuladores.
Porque, convenhamos, ninguém, absolutamente ninguém, merece sofrer. Muito menos o sofrimento eterno.