A flexibilização da posse de armas tem me feito lembrar de algumas coisas bizarras, muito irresponsáveis, e bastante perigosas, que vivenciei ou testemunhei, principalmente no âmbito familiar, antes do Estatuto do Desarmamento, em 2003.
Lembro-me que com 4 ou 5 anos de idade eu já atirava com as garruchas de meu pai, com ele me ajudando a segurar a arma. A minha lembrança era de que as garruchas dele, de cano curto, nas quais iam cartuchos bem grandes, eram capazes de fazer imensos estragos em tijolos ou em qualquer tipo de barreira aparentemente bem resistente. O tiro era um evento bastante explosivo, com um som muito estrondoso e sempre com um imenso estrago em seu alvo. Era uma demonstração de força, de masculinidade, para a qual desde muito cedo já éramos constantemente impelidos, acompanhada das mais diversas e conhecidas expressões, tais como "homem não chora", "vem aqui se você for homem", "isso é coisa de macho", etc...
Morávamos na periferia, em um conjunto habitacional, cujas casas originalmente tinham 33 metros quadrados, compostas somente por quarto, sala e cozinha. Sendo que moramos nessa casa, com esse tamanho, com essa configuração, até meus quatro anos de idade. Então, durante um bom tempo, meus pais dormiam no quarto, no qual também havia o berço de meu irmão caçula (Cako), que era bebê, e eu e o mais velho, Edu (dois anos e meio mais velho que eu), dormíamos na sala, em um único colchão de solteiro, no chão.
Quando meus pais se mudaram para esse bairro havia, no terreno, somente essa casa, sem qualquer tipo de muro ou portão, separando-a das casas vizinhas e da rua. E assim era a maioria das casas da rua e do bairro. Imagino que meu irmão mais velho devia ter somente alguns meses de vida. Contudo, passado um pouco mais de um ano, Edu já andava com facilidade e minha mãe começou temer que ele corresse para a rua e fosse, por exemplo, atropelado. Ela conta que foi uma batalha muito grande junto ao meu pai para conseguir construir um muro que separasse a casa da rua. Ele sempre alegava que não tinha dinheiro, e no final das contas ela acabou descobrindo que ele tinha dinheiro guardado mais do que o suficiente para construir um muro e colocar o portão.
Então aquele casal, que sempre teve uma relação muito conflituosa, desde quando namorava, tinha um início de casamento também muito turbulento, com muitas brigas, e essa era mais uma delas, para que ele botasse a mão no bolso, e fizesse um portão e um muro com o objetivo de proteger seu filho pequeno. O filho que, segundo minha mãe, ela resolveu que ia ter em função do conselho de sua sogra, a mãe do meu pai:
- Dá um filho pra ele, que ele acalma...
E assim ela imaginava que ele talvez deixasse de ser tão mulherengo, começasse a chegar mais cedo e sóbrio em casa, sem aquele cheiro de álcool.
Em 1976 quando eu tinha de três para quatro anos de idade, depois de uma breve separação conjugal, minha mãe impôs a condição de que meu pai parasse de beber, para que eles voltassem a ficar juntos, e deu certo: meu pai aceitou e conseguiu cumprir à risca esse acordo durante oito anos.
Creio que esses 8 anos tenham sido os mais pacíficos do casamento deles. Meu pai, além de ter parado de beber, praticamente não escondia mais dinheiro algum, e com isso foi possível fazer uma boa reforma na casa, a qual possibilitou a construção de uma garagem para dois carros, aumentar o tamanho da sala, construir mais um quarto e ainda um quarto de despejo no fundo do terreno.
E nada disso tem relação com armas, aparentemente, porém a casa tendo tornado uma casa bem maior, com mais cômodos, com um quintal e com muros que a circundavam, se transformou em um espaço interior maior, portanto com mais possibilidades de esconderijo para ladrões, por exemplo.
Eu me lembro muito bem das várias noites em que meu pai ouvia algum barulho que lhe fosse suspeito, se levantava com sua garrucha de dois canos em punho, e ia até o quintal para averiguar o que estava acontecendo. Levantava, somente de cueca, com a garrucha na mão, e sumia no meio da escuridão.
Essa garrucha ficava do lado de sua cama, dentro de um saco, e não me lembro de nenhum de nós com curiosidade de ficar manipulando aquilo o tempo todo, ou achando que podia usá-la sem a permissão dele, inclusive porque ele era bastante rigoroso conosco em função de qualquer coisa que fizéssemos que alterasse até mesmo a posição em que ele tinha deixado seus pertences.
Houve uma época inclusive em que ele se tornou bastante metódico nos castigos corporais que nos aplicava. Tinha uma grossa vara de marmelo, envernizada, que era especificamente utilizada para nos punir em caso de algum ato que ele julgasse como transgressor. Quanto maior a transgressão, maior era o número de varadas que recebíamos com força controlada e metódica nas pernas, na parte de trás das coxas. Quando nós três recebíamos conjuntamente esse tipo de castigo depois ficávamos competindo para ver quem estava com os maiores vergões.
Em minha casa então, desde quando éramos pequenos, havia: essas garruchas; algumas espingardas pica-pau, que eram armadas pelo cano, com inserção de pólvora e chumbos; zarabatanas estilingues e arcos e flechas. Posteriormente, já em minha adolescência, tínhamos também: arcos-balestra; revólveres 765, 38 22, 32; espingardas Winchester; espingardas de pressão CBC, Rossi, tanto de cano longo como de cano curto; espingardas de pressão automáticas que disparavam 80 tiros seguidos, da marca Fionda e a extremamente potente Urko 3; vários tipos de armas de brinquedo, algumas praticamente idênticas a uma arma real e coleções de facas e canivetes. Acho que meu irmão mais novo, com 12 ou 13 anos, já tinha uma coleção de facas e canivetes.
Nos finais de semana, quando íamos passear em algum rancho ou chácara de conhecidos, meu pai levava algumas dessas armas para se divertir. Em uma dessas vezes, quando eu tinha por volta de 5 anos de idade, tentei armar sozinho uma espingarda de pressão, a qual exigia um pouquinho de força no final, para que se criasse a pressão necessária para o tiro, e ela fosse engatilhada.
Contudo, com 5 anos de idade eu não tinha força suficiente. Após muito esforço o cano acabou escorregando de minhas mãos, e retornou rapidamente à sua posição original, atingindo minha testa exatamente com a parte da mira da arma, a qual era relativamente pontiaguda. Isso fez com que houvesse muito sangue, e meus pais ficaram bastante atônitos a imaginar que eu tinha tomado um tiro na cabeça. 4 ou 5 pontos fecharam a ferida, cuja cicatriz tenho até hoje em minha testa.
Lembro-me também de que, por volta dessa idade, ou até mesmo mais novo, de ser comum irmos a algum lugar descampado, para atirarmos flechas para o alto. Nós crianças atirávamos essas flechas para o alto segurando o arco com os pés, mirados para cima, puxando as cordas com as mãos. E assim eu contemplava com bastante admiração a imagem de uma flecha subindo, até quase desaparecer e retornar muito velozmente ao chão, no qual se fincava com bastante profundidade.
E obviamente havia um risco grande de uma flecha dessas se extraviar, cair em algum outro lugar e poder ferir seriamente ou matar alguém. Mas eu estava ali, participando daquilo tudo, me divertindo, como bem cabia a uma criança daquela idade, sem nem mesmo me dar conta dos riscos, e somente hoje consigo entender que havia riscos e que aquilo era talvez algo muito perigoso.
Quando eu tinha 4 anos de idade, meu irmão mais velho já tinha 6 ou 7 anos, e ele já brincava sozinho com dardos de adultos. Certa vez ele estava arremessando seus dardos em um alvo, e eu passei correndo em sua frente. É bizarro: um dos dardos acertou minha cabeça, e ficou preso ao couro cabeludo. Eu chorava e gritava muito, enquanto minha mãe retirava o dardo que estava fincado em meu couro cabeludo.
Eu poderia ter sido atingido, por exemplo, nos olhos, tanto com o dardo, quanto com o cano da espingarda. Uma dessas espingardas poderia ter sido acidentalmente disparada e, com um tiro tão forte quanto o de uma Urko 3, alguém poderia ter morrido.
Felizmente nenhum de nós morreu ou ficou seriamente ferido, e me lembro somente de um único disparo acidental, já em nossa adolescência, de uma picapau, nas mãos de Edu, que disparou para cima, fazendo um rombo nas telhas de amianto da varanda dos fundos de casa.
Edu também, há mais de 30 anos, quando tinha uns 17 anos de idade, teve uma discussão comigo, enquanto estava com uma Urko 3 na mão, e em um momento de raiva apontou-a para mim e me fez correr por debaixo de mesa e para todo lado com aquela espingarda apontada para mim, ameaçando me dar um tiro. Fiquei apavorado e inconformado com aquele ato de covardia. Foi uma sensação horrível.
Meu pai, com suas armas, principalmente suas espingardas de chumbinho automáticas, que podiam atirar 80 chumbinhos, um seguido do outro, sem recarga, matou inúmeros animais, de diversas espécies. Cako, meu irmão caçula, chegou a matar um ou outro animal. Edu, meu irmão mais velho, durante sua adolescência, também matou inúmeros animais, para depois se transformar em uma pessoa completamente diferente, que até se compadecia excessivamente de tudo quanto é sofrimento nesse mundo.
Uma vez apontou a Urko 3 para uma pomba, em um fio de alta tensão, e antes que ele atirasse arremessei um pedaço de cabo de vassoura, na esperança de que ela voasse para longe. O pedaço de pau passou longe da pomba, e ele a abateu. Então, em tom triunfante, olhando para mim e para seus amigos, anunciou, dando risadas:
- Adriano, o salvador da natureza!
E uma outra lembrança que tenho, de 1994 ou 1995, era a de que meu pai estava com uma quantidade grande de revólveres em sua casa. Nós três (eu, Edu e Cako), todos já com mais de 20 anos de idade, achávamos aquela quantidade de revólveres um exagero. Mas não ficávamos muito surpresos, porque meu pai era mesmo uma pessoa muito exagerada, em muitas coisas. Quando gostava de alguma coisa, acabava colecionando ou cultivando em excesso.
Novamente, bizarro. Uma vez cheguei em sua casa, e fui me sentar no sofá, e por debaixo da almofada do sofá senti que havia alguma coisa pontuda, me incomodando. Tirei a almofada, e era um revólver.
Não foi sem motivo que, tanto eu quanto meus dois irmãos, quando assistimos aos Simpsons pela primeira vez, logo associamos Homer à figura de meu pai.
Essas foram algumas de minhas lembranças bizarras em relação à convivência que eu e minha família tivemos com armas, anteriormente ao Estatuto do Desarmamento.
E muitos de vocês devem estar se perguntando porque estou simplesmente narrando uma série de eventos bizarros que ocorreram em minha vida e de minha família, relacionados a posse de armas, anteriormente ao Estatuto do Desarmamento.
A questão é que estamos observando várias coisas bizarras desde as últimas eleições, creio que a principal delas sendo a eleição de Bolsonaro para presidente e a eleição de inúmeros de seus correligionários, que apresentam constantemente pautas e discursos bastante tresloucados, assim como um grande número de pessoas de sua equipe, que vem falando e prometendo as mais variadas sandices. Então por que não posso aproveitar e contar um pouco de minha história e algumas histórias bizarras que eu mesmo vivenciei, que talvez comecem novamente a fazer parte do cotidiano dos brasileiros?