A hipnose é uma técnica mergulhada em mistificações. Abordo este tema, detalhadamente, em meu livro sobre o assunto: “Hipnose: fato ou fraude?”. Antes, porém, tive algumas experiências interessantes.
Vi muitos dizerem que se utilizam da hipnose em sua prática terapêutica, seja ela pertencente à Psicologia ou não: médicos, terapeutas alternativos, psicólogos, dentistas e outros. Infelizmente, boa parte das pessoas com quem tive contato, utilizava a hipnose de modo mistificador e, em alguns casos, até mesmo de modo fraudulento e charlatão. Existem obviamente muitos profissionais conscientes de suas limitações e das técnicas que fazem uso. Porém, a hipnose, com toda sua aura lendária, parece atrair legiões de enganadores.
Está muito próxima do truque. O ilusionismo é de certa forma uma espécie de hipnose. Ao chamar a atenção para um ponto específico e produzir a percepção de uma ilusão, é gerado um efeito muito semelhante ao que se faz durante uma indução hipnótica. O objeto muitas vezes já se encontra ali e nem nos damos conta, pois nossa atenção está focalizada em um outro ponto. Isto é muito comum em apresentações de ilusionismo. Deste modo, em algumas práticas, não é estranho que uma coisa comece a se confundir com a outra.
Um exemplo. O sujeito faz hipnose de palco e está mais preocupado em impressionar o público do que em fazer compreender o que de fato está ocorrendo ali. O mais importante é mostrar-se como o detentor de um dom espetacular e misterioso, como alguém poderoso, senhor de conhecimentos profundos acerca do controle da mente e comportamento alheios. Habilidades que somente seriam adquiridas mediante um aprendizado especial, guardado às sete chaves, por centenas de anos.
O sujeito aquece o público com estórias de casos bem sucedidos, de espetáculos já propiciados. Relata curas incríveis. Às vezes possui sotaque estrangeiro, o qual reforça ainda mais a assimetria entre ele, hipnotista, e nós. Possui uma retórica envolvente, provoca carisma e/ou temor. Geralmente bem vestido e dito bem sucedido. Um jogo fulminante de aparências. Ilusionismo e inebriação do começo ao fim. Sem qualquer aviso, será realizada a hipnose de todos. O auditório acaba também sendo hipnotizado, mas assim não concebe.
A pessoa já está no palco, sendo submetida a uma indução. O hipnotista começa a sussurrar em seus ouvidos. O que será que diz nestas horas? Quais são as preciosas e “mágicas” palavras que sussurra ao pé do ouvido daquela pobre vítima de seu poder avassalador? Logo, a presa está lânguida e sob o completo controle deste mago. É assim que este tipo de hipnotista quer fazer parecer.
Uma vez um deles perguntou ao público:
“Quem aqui acha que não é facilmente hipnotizável, levante a mão.”
Algumas pessoas levantaram a mão. Escolheu uma jovem de expressão doce. Utilizava uma técnica de fixação do olhar, na palma de sua mão, bem acima da cabeça da jovem, com o ombro direito dela apoiado em seu peito. Sussurrava em seu ouvido e a abraçava, estando ela de lado para ele. Em poucos minutos, ela já pendia a cabeça em seu peito, caindo literalmente em seus braços.
Este excesso de proximidade física pode produzir um efeito de opressão ou proteção corporal. Retoma na pessoa hipnotizada estados de estar sendo possuída, seduzida ou dominada. Em termos pavlovianos, é a conquista da presa, o beco sem saída. A consumação de um domínio, de uma caça, de um ato de sedução. O que resta então à presa? Congelar. Freezing.
Percebi que este hipnotista, quase nunca trazia homens ao palco, e se os trouxesse era somente para deixá-los absortos num canto. Com as mulheres era um intenso contato corporal. Com os homens, uma distância fria.
“Meu caro colega, você já percebeu que utiliza quase somente mulheres em suas demonstrações?”, indaguei.
“É verdade. Às vezes penso que sou guiado pelo meu tesão. Você viu a última menina? Que gracinha. Foi muito bom tê-la nos braços.”
Ele se realizava ao perceber que havia hipnotizado uma mulher atraente, que esta havia caído em seus braços, como se tivesse de fato consumado uma sedução. Preferia sempre mulheres bem mais jovens. E não raro enamorava-se de suas alunas ou pacientes. Todas as últimas companheiras que tivera tinham sido alunas ou pacientes. Outro detalhe é que sempre fora um sujeito muito ambicioso. Sempre muito atento para seus proventos financeiros. De seu círculo de conhecidos, não havia quem não percebesse isto.
Para piorar, no final, depois de ter hipnotizado a jovem que dissera não ser facilmente hipnotizável, soltou a seguinte pérola:
“Pois como eu digo: jamais duvidem do poder de um hipnotizador”.
Convenhamos, para ser hipnotista é preciso também ser uma besta?
Seu desejo mais íntimo era talvez hipnotizar o mundo todo e dele apropriar-se como seu senhor supremo. E a hipnose não seria um caminho para isso? Não é isto o que fazem alguns, senão todos os sacerdotes via-satélite, o quais podemos acompanhar a qualquer hora da madrugada em programas religiosos transmitidos pela televisão?
Uma vez, inclusive, eu estava a assistir um destes programas. Alguém chegou. Percebeu que eu perseverava em assistir e não entendeu.
“Ué, Adriano? Por que você tá assistindo isso aí?”
“Rapaz, tô aqui tentando compreender quais são as técnicas que esse povo utiliza. Olhe a oratória desse sujeito. A emoção, a música. Tá construindo um mundo inteiro dentro da cabeça do povão somente com a boca. Haja recurso dramático, haja repetição...”
Sim, dá pra ficar abismado. E não foi diferente quando, em um curso que fiz, mencionei que o maior centro de hipnose estava ali, ao lado. Mas as pessoas não entenderam.
“Sim, gente, aqui, do outro lado da rua. Aquele enorme templo ali, oh, é o maior centro de hipnose daqui das redondezas.”
Algumas pessoas, não sei por que, ainda não compreendiam. Desculpem-me, mas esses cursos são repletos de antas.
“Ou vocês acham que o sacerdote daquele templo utiliza técnicas muito diferentes das que estamos a aprender aqui?”
Era bom não insistir muito. Fanatismo também existe fora daqueles templos e rituais histéricos.
Aliás, num destes cursos, os quais geralmente são caros e cheios de conversa fiada, vi e ouvi cada uma.
Entrei no site do curso, para verificar mais especificamente do que se tratava, se valeria à pena pagar pra ver. A home page tinha uma concepção visual de última categoria. Além de graficamente pobre, era repleta de clichês. O que talvez seja até meio difícil de se escapar completamente. Para dar um exemplo, a primeira edição de meu livro possui também alguns espirais. Sutis, mas não deixam de ser espirais. E, portanto, para a área, clichê.
Mas o problema não era somente este. Não somente clichê mas também graficamente pobre, muito pobre. Todo seu conteúdo era voltado para a promoção dos cursos. Faziam também referência a uma associação de hipnose que teriam fundado. E muitos fazem isto. Criar uma associação, mesmo que esteja evidente que é somente de fachada, produz, para muitos, ingênuos, uma outra impressão.
Além de site, tinham uma associação. Qualquer um que fizesse o curso já automaticamente ficava inscrito na “associação” de caráter nacional. Verifiquei os preços dos cursos. Caríssimos. Turmas sempre lotadas, sem limite de inscritos. Sinalizavam inclusive o recorde de participantes em um de seus cursos. Fiz as contas. Os lucros eram altos, muito altos: um negócio da China. O sujeito tinha criado uma máquina de fazer dinheiro. Mas ainda era um negócio familiar, nada ainda em grande escala, como uma PNL, por exemplo.
Alias, não sei por que. Talvez seja até preconceito de minha parte. Mas não confio em nada que venha com um ™ do lado. Inventam um nome e uma embalagem diferente para uma coisa que todo mundo já conhece, para disfarçá-la, e botam lá o famigerado ™. Ainda não me acostumei com este tipo de coisa. Mas já pensaram nisso? Freud lançando seu livro “A interpretação dos sonhos” com a capa assim: “A interpretação dos sonhos™”. Estranho. Muito estranho.
Outro fato interessante no site do dito curso era a bibliografia. A grande maioria era de livros de autoajuda. Como montar alguma coisa séria com base em livros de autoajuda? Como era um curso totalmente focado em técnicas de indução hipnótica, pensei que seria interessante fazê-lo. Eu estava mais interessado no que chamo de lay-outs de técnicas. Pagaria então pra ver se havia alguma técnica nova, que me surpreendesse. Com o termo lay-out pretendo dizer que a estrutura é a mesma e o que muda são somente alguns detalhes, os quais eu não tenho criatividade suficiente para tirá-los da cartola.
Existem fundamentos básicos da técnica: repetição, focalização da atenção, privação sensorial. Abordo também esta questão em meu primeiro livro (já citado) sobre o tema. Adotando estes fundamentos, o restante é somente uma roupa, uma embalagem diferente em cima de uma mesma coisa, sempre, ou seja: lay-outs, molduras. Fui então em busca de molduras diferentes. Uma hora o sujeito fixa o olhar em sua própria mão, na outra, na mão do hipnotista, em algum ponto do ambiente, pêndulo, com os olhos voltados para cima ou para baixo, em posição fatigante, e por aí vai.
O curso contudo foi, em termos teóricos, bem fraquinho, sem a menor consistência. A cabeça do professor era totalmente modelada por débeis considerações de livros de autoajuda. Incapaz de qualquer questionamento ou reflexão mais profundos. Uma voz muito calma e a retórica mais do que necessária para inebriar muitos dos presentes, já há muito inebriados, talvez pelo tema, ou pela própria pressão do grupo a endossar cegamente os milagres de que era capaz a hipnose.
Em muitos momentos a cena beirava a comicidade, o ridículo. Aliás, hipnose, se não tomarmos cuidado, pode muitas vezes nos mergulhar no ridículo. Não sou muito temeroso com o ridículo, desde que assumido e conscientizado. O que não era o caso. Ele enumerou, e até de modo inútil, uma aparente infinidade de técnicas. Somente aparente. Ao meu lado, um aluno, inconformado com a perda de tempo, a observar tanta debilidade mental, chegou a comentar:
“Esse curso é oco, vazio. Não tem nada dentro. Tudo em função somente das aparências, mais nada.”
E durante o coffee-break:
“Este foi o coffee-break mais caro de toda a minha vida.”
Outro, mais nervoso, mais revoltado, com um jeito efeminado, também não se conteve:
“Vou pedir meu dinheiro de volta. Estou me sentindo em um ritual da Seicho-no-ie. Não vim aqui para isso. Não estou acreditando nisso.”
Fizeram, durante o coffee-break, destilar seu veneno, e queriam minha solidariedade à sua revolta. Eu não estava nem um pouco contrariado:
“Desculpem-me, mas vocês deveriam ter avaliado melhor do que se tratava antes de terem se inscrito. Dessem uma olhada na bibliografia e logo veriam que a teoria aqui não passaria de conversa fiada.”
Para mim não havia surpresa. Sabia que ouviria mesmo muito papo furado. Minha meta eram as molduras, as pinturas eu já as tinha.
Não sei se o professor assim concebia, mas muita coisa que falava colocava em xeque sua malícia e inteligência:
“Minha esposa disse que estava cansada e doida pra estar numa praia. Fiz uma hipnose com ela e pronto: foi para a praia, sem precisar sair do lugar, sem gastar um tostão”, comentava.
E fez aquela lista enorme de curas. Hipnose como remédio pra tudo, como panacéia. A ausência de qualquer limite, de qualquer critério. Parecia um caixeiro viajante, de cidade em cidade, a vender seu tônico miraculoso. E não assim que também agiam os sofistas, vendendo sabedoria de cidade em cidade? E sempre a promessa de mundos e fundos, de resultados imediatos. Sem uma grande promessa, não há bom negócio. Deve-se resguardar muito bem o campo das aparências, da perfumaria, usar e abusar da repetição e da retórica e, por fim, mesmerizar o público, com a anestesia completa de sua capacidade crítica.
O rapaz revoltado foi à frente, como sujeito de uma demonstração:
“Não estou hipnotizado”, em tom afetado.
“Foi exatamente isto o que eu disse à primeira vez em que eu havia sido hipnotizado”, respondeu o mestre.
Em toda sua dificuldade, o professor tinha uma habilidade: a de não estender uma discussão, de não esquentá-la. Estava sempre em baixíssima temperatura. O que não interessava, ele simplesmente nem dava ouvidos. Calmo, sempre muito calmo.
“Não estou hipnotizado”, repetiu um outro.
“Está sim, você que não está percebendo...”
Esta sua última réplica retomou à minha memória Milton Erickson, em um de seus livros. Às vezes fazia exatamente esta mesma coisa. Desculpe-me a autoridade de Erickson neste campo, mas isso é patético. O sujeito está dizendo que não está hipnotizado e retrucamos que sim? E fim de papo, sem qualquer justificativa ou explicação plausível? Não compreendo. Tosco.
As demonstrações deste nosso mestre meio atrapalhado eram também muito rápidas. Queria demonstrar todas as suas “infinitas” técnicas. Então tudo adquiriu um ritmo de amostragem, se é que ele assim concebia. Às vezes parecia pegadinha ou brincadeira de criança, de tão idiota. A pessoa ia até a frente, ele lhe passava a mão na testa, ou fazia qualquer outro sinal e pluft!: “durma, durma”. E claro, a maioria não sentia absolutamente nada, deixando nitidamente de exibir qualquer alteração. Brincadeirinha inócua. O menino efeminado não perdoava:
“Palhaçada isso aqui.”
Tentei acalmar o rapaz. Mas minhas intervenções o deixavam ainda mais histérico e inconformado.
Em outro momento, senti que era importante fazer algumas considerações, pois o professor acreditava que a hipnose fosse uma eficiente ferramenta para a recuperação de memórias. Pedi a palavra e falei de uma questão fundamental: as falsas memórias.
Utilizar a hipnose para recuperar memórias é um grande equívoco. Isto está mais do que estabelecido, inclusive em nível experimental: a hipnose pode induzir a produção de falsas memórias.
Vários autores perceberam isto, inclusive Freud, há mais de um século atrás. Em nível experimental, as pesquisas mais conhecidas são as de Elizabeth Loftus. Realizou uma série de experimentos e pesquisas sobre o tema, além de ter escrito vários artigos e livros a respeito.
Em um de seus experimentos mais conhecidos, submeteu diversos sujeitos a um vídeo de curta duração, o qual retrata dois carros se colidindo. Depois, foram formulados dois tipos de questionamento, para dois grupos diferentes:
1. A que velocidade os carros estavam quando se colidiram? Houve algum vidro quebrado?
2. A que velocidade os carros estavam quando se estraçalharam? Houve algum vidro quebrado?
Como se pode ver, a única diferença é entre os verbos “colidir” e “estraçalhar”. Os resultados são significativos. Os sujeitos do segundo grupo tendem a atribuir velocidades maiores aos veículos e a dizer que viram vidros quebrados, apesar de não haver vidros quebrados no vídeo. Ou seja, foi produzida uma falsa memória.
Fiz minhas considerações e deixei claro sobre os perigos de uma concepção que confere à hipnose o poder legítimo na recuperação de memórias. Não somente pelas demonstrações experimentais, mas também pelos estragos históricos que já foram produzidos por este tipo de prática na clínica. Houve diversos casos nos Estados Unidos, principalmente na década de 80. Alguns pacientes, submetidos à hipnose para recuperação de memórias, saiam das sessões com a convicção de que haviam sido abusados sexualmente na infância. Os supostos infratores (os acusados) eram geralmente os pais, parentes ou amigos bem próximos. Em alguns casos, o que é ainda mais grave, estes acusados chegaram a ser presos.
O professor, sempre muito diplomático e suave, ouviu atentamente minhas considerações e, mesmo que não tenha compreendido nada, endossou tudo para que pudéssemos logo passar adiante. Mestre da polidez, sem dúvida.
No final do curso foi muito gentil. Entregava os certificados e abraçava a todos, sem distinção. Por um momento pensei que eu até poderia ser desprezado ou hostilizado. Mas não, o sujeito era um doce. Fazia o que tinha de fazer e não olhava muito para os lados. Era um manual de autoajuda ambulante. Sempre sorrindo, sempre educado, otimista.
Mas ficou-me a seguinte impressão, a que geralmente tenho quando me deparo com sucessos da autoajuda, sejam livros ou pessoas: era cego, era a vitória completa do auto e do heteroengano. No caso dele, mais especificamente, pareceu-me um autoengano tão estrutural, que o engano dos outros deixava de ter uma aparência tão maquiavélica.
E assim foi um final de semana inteirinho. Um festival de ilusões e dogmas cafonas. Nenhum surto, nenhum vexame, nenhuma agulha atravessando a carne de ninguém. Nada muito excitante, a não ser as cifras volumosas que o professor tinha botado no bolso.