Eis, no título, entre aspas, outro comando do senso comum, o qual concebe os sentimentos como mais importantes do que a racionalidade. Primeiramente, é interessante mencionar a origem moderna desta concepção. Em termos modernos tudo começa com o Romantismo, na segunda metade do século XVIII.
Os românticos, em contraposição ao espírito iluminista, convocam o sentimento e as paixões como o centro de seu projeto de elevação do ser humano. Para os românticos a verdade se encontra em tudo o que é marginal, desviante, diferente, não-massificado, natural, descontrolado, louco, desmedido, alterado, espontâneo, original e animalesco. É a valorização do sentimento e das paixões, em oposição à racionalidade e às convenções.
Pregam o retorno a um estado de natureza perdido. Para o romântico, natural é sinônimo de verdadeiro e saudável; o respeito à individualidade rompe com qualquer convenção. O reino da verdade está na espontaneidade, na diferença, no comportamento das crianças e dos animais. Ser romântico é se deixar arrebatar, romper com limites, ir além do concebível, para deixar que a imaginação e a natureza, com sua força atômica, tomem o timão da vida; é surpreender-se, trair-se, e implodir com todo e qualquer espírito retilíneo e de coerência; é sempre estar disposto ao diferente, ao mutável, ao imprevisível; é entregar-se para a intensidade da vida, para que dela se usufrua de sua essência mais crua, nua e sem pudor.
O Romantismo é o movimento que deu um grito desvairado de liberdade em direção ao projeto iluminista de controle de tudo. É o movimento desesperado na direção do amor louco que habita os porões de todas as convenções e tentativas de padronização do humano. É o grito do indivíduo em sua desmedida busca de si mesmo no olho do furacão de seus infinitos mistérios, mergulhados na carne viva das paixões e dos sentimentos.
Como falar de Romantismo sem se perder, sem fazer com que a linguagem entre em ebulição, sem se empolgar, sem paixão? Sem ouvir música, sem música sendo bombeada para dentro da cabeça, e ela em vulcão a se queimar pelas lavas do amor que espirram do coração? Como falar de Romantismo sem a vertigem psicotrópica de tudo o que os homens já cultivaram de alterações de consciência no parquinho de seus corpos recheados de sexualidade e mistério? Como falar de Romantismo sem explodir com os exércitos da razão e da percepção? Como muito bem sempre desejaram os românticos, se as portas da percepção fossem abertas, veríamos tudo como é: infinito, escancarado, nascente e voluptuoso.
O Romantismo, em seu estado de gema, na sua nascente, foi concebido como “tempestade e ímpeto”, assim que era chamado o movimento. Há muita energia concentrada e libertação dessa energia. Não se produz Romantismo sem arrebatamento ou até sem um certo exagero bizarro. O Romantismo da gema praticamente nada tem de semelhante com o que o senso comum define. Este é um romantismo com letra minúscula mesmo. É a massificação da concepção original de Romantismo, sua pasteurização vulgar, enjoativa e cafona.
Sim, faz parte do Romantismo o elogio do amor erótico. Para os românticos é a via do corpo (e não a da mente) que trará a liberdade, e com tudo de animalesco que ele traz junto: sexo, troca de secreções, e sua finitude escancarada, por que não? Assim, o corpo liberta, o amor, a comunhão com o outro liberta, seja por meio do sexo ou o êxtase psicotrópico e espiritual, este nunca desabraçado do corpo: a volúpia de alguns rituais religiosos, principalmente os pré-cristãos ou quaisquer rituais cristãos renovados e dispostos a se misturar com as diversidades que navegam pela realidade humana.
O senso comum traça um perfil muito pobre do que seja o espírito romântico, uniformizado a demonstrações piegas e vulgares, as quais vangloriam modos padronizados de amor, atirando à latrina da memória a marginalidade, a loucura, o horror, o bizarro e a desmedida em que habitam a “tempestade e o ímpeto”.
Não nos esqueçamos, para o Romantismo, pleno, da gema, há verdade na droga, no louco, no sexo, no corpo, no mendigo, no marginal, no êxtase. É virtuosa a experiência dos limites. Essa busca, ressaltemos, não é imune de autodestruição. Românticos muito frequentemente ultrapassam todos os limites e vão lá se enamorar da fronteira última, a morte.
Desde que surgiu o Romantismo, as artes aí mergulharam e pouco conseguiram, até hoje, se desfazer de seus aromas. Mais de duzentos anos depois, quase tudo o que é arte ou artista ainda exala Romantismo. E como criar sem se libertar, sem se entregar aos rincões mais remotos de nossos horrores, escondidos em nossa essência mais espontânea e animalesca? Como criar sem extrapolar, sem transgredir com padrões preestabelecidos?
É esse o buraco existencial em que o artista se mete, e em que alguns se perdem e se matam. Como, nessa empreitada de louco, de ser artista contemporâneo, não bater de cara com o botãozinho da autodestruição? Como não esbarrar nele sem querer? Como saber o momento de parar?
E assim, reparem nas toneladas de exemplos, muitos artistas morrem cedo. Alguns deixam legados profundos, o quais foram construídos de modo meteórico. E muitos outros morrem anônimos e são rapidamente esquecidos.
Mas ouvir o coração tem também algumas outras nuances, as quais deixarei para um outro texto...