Tuesday, August 10, 2010

A morte e o medo de ser esquecido



O que nos faz ter tanto apego à vida ou a ser lembrado? Mesmos os suicidas, de modo geral, não desejam ser esquecidos. E todos seremos esquecidos, mais dia menos dia. Daqui uns 100 anos a maioria das pessoas que hoje vive estará completamente esquecida. Não haverá mais qualquer rastro nosso por sobre a Terra. Essa é a regra.
As pessoas falam de como desejam ser sepultadas, de como querem ser lembradas. Mas se esquecem de que serão esquecidas.  E para que tanto desejo disso ou daquilo, se já não mais existirão? É o apego, o amor próprio, o qual revela seus tentáculos imaginários para além da vida. E sempre o desejo de não ser esquecido, esse mandamento irracional e desmedido do amor próprio, de nosso egoísmo fundamental.
Trata-se do sentido estóico da vida: perseverar nela. O sentido da vida é a perseveração nela. Todo ser vivo luta por se manter vivo. A vida seria assim compreendida como o conjunto de resistências à morte. E todas as resistências que levantamos inclusive para desesperadamente afirmar a existência improvável de nossa eternidade. Amor próprio, somente ele talvez explique os absurdos em que acreditamos para não aceitarmos nossa própria finitude absoluta: haja narcisismo.  Não acredito nesse sentido estóico para a vida. Penso que o princípio do prazer, concepção epicurista, é prevalente. Todo ser vivo, o qual possui percepção, busca prazer ou foge da dor. A perseveração e todas suas derivações são nada mais do que ressonâncias de nosso próprio egoísmo fundamental.
Acho mais madura e humilde a concepção de que com o fim da vida, tudo acaba. De que tenho começo, meio e fim. Por que eu seria infinito, dotado de alma eterna, e os protozoários e vermes não? Arrogância especista. Humanismo infantil. Por que o ser humano seria assim privilegiado, mais especial do que todas as outras espécies? Então somos eternos e o resto não? Como assim? Se o sofrimento iguala todas as espécies que são sensíveis, o que nos faria assim tão diferentes e melhores? A racionalidade? Sim, somente se for para nos autoenganar acerca de nossos próprios limites enquanto seres vivos, seres que morrem, que acabam.
Contudo, compreendo um pouco até onde vai nosso amor próprio, nossa paixão cega por nós mesmos, nosso narcisismo. Como aceitar que nossa vida e a de quem amamos, que tanta beleza, complexidade, singularidade e profundidade possa se desfazer? Pois é exatamente isso o que sentimos em relação a nós mesmos e a quem amamos: beleza, complexidade, singularidade e profundidade. Somos humanos, seres portadores de consciência reflexiva (sabemos que existimos e que morremos) e somos também seres sociais. Nossa existência assim concebida e a presença do outro são vividas em estado de imensidão.
Psicologicamente somos vastidão e profundidade incalculável para nós mesmos e para quem nos ama. E é amando e se envolvendo com pessoas que sentimos a presença constante do infinito na identidade singular que cada ser humano possui e carrega consigo. Cada um é um. Ninguém é igual a ninguém. Parafraseando Drummond, todo ser humano é um estranho, absurdo e infinito ímpar. A singularidade da existência de cada um é uma ressonância de infinito, traduz as possibilidades infinitas de existência. E assim fica talvez difícil não acreditar na eternidade. O amor produz profundidade e sentimentos de eternidade. Amar é ver o abismo que é o outro. Não tem fundo. Não tem limite. Apaixonar-se é cair nesse abismo. E de tão apaixonados que somos por nós mesmos, nos acreditamos como eternos.
Só dá para escapar das contradições dessa concepção se admitirmos que tudo é eterno, de que há um outro mundo, paralelo a este, fonte deste e eterno. O mundo platônico das ideias, das almas de tudo, a fonte de tudo. E este mundão aqui seria isso mesmo: repleto de mudanças e mortes.
Mas as pessoas se angustiam e não se cansam de perguntar sobre o que será o futuro, e o que será após a morte. Para onde vamos depois que morrermos? Para o mesmo lugar de onde viemos antes de nascermos. Todos se perguntam sobre o que será após a morte, mas ninguém se pergunta sobre o que foi antes de ter nascido. E, confesso, tenho pensado muito sobre o que “fui” antes de ter nascido. Um pensamento me deixar muito consolado: não fui nada, eu não existia. E voltarei a não existir após minha morte. A coisa que mais fiz, na existência de tudo, foi não existir. Pensando assim aceito melhor minha finitude e o esquecimento completo de meu ser. Posso desejar o que for dentro da minha pequenez diante de tudo, contanto que sejam desejos para mim mesmo e não para o mundão lá fora.

Sunday, August 01, 2010

“A vida é curta”?



Nem curta, nem longa. Sem ensaio, replay, nem prorrogação, ela é o que é: uma só. Esse “uma só” é negado por muita gente. E aí pode ser que advenha o lugar comum de que ela é curta. Como não podemos ensaiar, nem fazer de novo (recomeçar do zero), parece que é curta. Como não podemos viver outra vez, uma segunda vez, pode parecer que é isso: curta. Eis o juízo de valor, a definição particular, subjetiva. Curta? Pra quem? Comparado a que? O que é curto para uns pode não ser para outros. O que as pessoas estão tentando dizer quando assim enunciam?

Não há coisa mais subjetiva e individual do que a vivência do tempo. É a temporalidade, o como cada um experencia a passagem do tempo. O que demora mais: uma hora namorando ou uma hora a padecer na cadeira do dentista? Ah, sim, “tudo o que é bom passa rápido”...

Cena típica: imagine uma criança a se divertir intensamente em uma festa ou parque de diversões, quando chegam os pais e anunciam que o tempo acabou, que já é hora de ir embora. Ela já vai aprendendo cedo o lugar comum: “tudo o que é bom acaba rápido”. Assim como os adultos que vivem a dizer que a vida é curta. Não querem deixar o parque de diversões da vida ou tudo aquilo que ela poderia ter sido e não foi. Ainda não se satisfizeram. A insatisfação com tudo o que a vida poderia ter nos dado pode nos fazer dizer: “a vida é curta”.

Sim, curta. “Não fiz tudo o que eu poderia ter feito”. “Não tive uma segunda chance, ou um tempo a mais, para tentar de novo”. “Não aproveitei o suficiente”. Mas também que saco esse mandamento atual de aproveitar ao máximo, tirar tudo o que a vida pode dar. Parece maximização de lucros. Quanto mais você tirar da vida, mais lucro você tem.

E nessa trilha não faltam também as imagens estereotipadas do que seja aproveitar a vida: viajar para tudo o que é lugar, explorar todas as infinitas distâncias do planeta (e acima de tudo, gabar-se por isso, mesmo que de modo disfarçado); enfrentar as maiores adversidades em espírito esportivo e elegante de aventura, com demonstração suprema de saúde e superação do restante dos mortais (enfim, poder...); viver as emoções intensas todas que a vida humana, ou sobrehumana, pode proporcionar; arriscar, estar sempre um passo além; sentir-se vivo em toda a intensidade possível; estar no cume dos mundos e pode urrar de prazer ou alegria. Eis o estereótipo mais comum do que seja aproveitar ou viver bem a vida.

Costumo fazer essa pergunta às pessoas: “O que é aproveitar a vida pra você”? Grande parte, obviamente, traz este estereótipo: viver o máximo possível em altíssima intensidade. Costumo pedir por imagens: “Que imagem lhe ocorre quando você pensa no que é aproveitar a vida, pra você?”. Há quem cite imagens de coisas totalmente distantes de seu cotidiano ou mesmo ausentes em sua própria história de vida. Citam coisas absurdas, megalômanas, que nunca fizeram. Como se a imagem do que é aproveitar a vida estivesse somente estampada nas revistas de celebridades. Outros citam imagens do que já viveram e padecem de nostalgia. E há também os que citam coisas de seu próprio cotidiano, muitas vezes bem simples, as quais habitualmente visitam ou realizam.

Os primeiros, convenhamos, não devem estar felizes. Os nostálgicos, por sua vez, não se cansam de dizer que eram felizes e não sabiam (o que também, penso eu, está carregado de ilusões). E os últimos são os que, de modo geral, sem muitos artifícios ou arsenais de felicidade, estão aproveitando a vida em sua simplicidade e dentro do que ela pode dar.

Agora, se me perguntassem o que é aproveitar a vida, pra mim, em uma imagem, eu responderia: “Pra mim, aproveitar a vida é boiar”. Sim, boiar. Quando estou flutuando, na água, com os ouvidos imersos e a cabeça imersa no universo, sinto que estou aproveitando a vida em sua plenitude. Isso mesmo, desse jeitinho: quieto, isolado e casado com o universo, seja lá como isso tiver de acontecer: boiando, correndo, namorando, escrevendo, comendo, conversando, dormindo, caminhando, capinando ou mesmo lavando louças.