Monday, April 21, 2008

Felicidade: paz ou excitação

Quando pensamos no nível de agitação de uma vida, pode-se dizer que são basicamente dois os tipos de felicidade concebíveis: uma como fruto de agitação e outra devido à paz. Um ideal deseja fortes emoções (excitação) e o outro, maisbucólico”, calcado na idéia de paz, deseja tranqüilidade. A idéia do que é ser feliz varia entre esses dois pólos.

quem conceba e deseje para si a agitação (excitação), e veja somente o possível caminho para a sua bem-aventurança. Aliás, esta parece ser atualmente a concepção dominante de felicidade. Por outro lado, existem também aqueles que pensam o contrário, e vêem na idéia de paz um caminho.

A idéia de que intensas emoções devem necessariamente acompanhar a felicidade é tão forte para algumas pessoas que elas simplesmente não são capazes de conceber a possibilidade de serem felizes com sutilezas ou na simplicidade. Em sua concepção, a felicidade deve sempre vir acompanhada de muito tempero, de muita pimenta. Ser feliz, nesta visão, é viver grandes emoções e grandes conquistas. É, de certo modo, incessantemente esperar ou lutar para que algo decisivo ocorra.

Para Bertrand Russell, o ideal de uma vida completamente livre de tédio, rotina ou mesmice, é nobre, porém, impossível. E acrescenta: “as manhãs são tanto mais aborrecidas quanto a noite anterior foi mais divertida”, poisum pouco de aborrecimento talvez seja até indispensável à vida” (1930/2001, p. 58-59). Para Russell a mesmice, o tédio, a rotina (o que ele chama de aborrecimento) são a regra.

Apesar de Russell fornecer inúmeros exemplos a favor de sua tese, a de que o tédio é a regra, podemos prescindir destes e partir da linha de raciocínio exposta em suas últimas palavras, no parágrafo acima.

A agitação é muitas vezes desejável, sem dúvida. Ela, porém, impõe expectativas e exigências com as quais geralmente não sabemos lidar. A idéia de que a vida deva ser repleta de agitação a torna mais penosa do que a aceitação de sua ausência. Vejamos, por exemplo, o caso da rotina. Há quem diga que detesta rotina. Esta fala é tão comum quanto tola. Rotina é algo inevitável e vital. Qualquer aprimoramento ou tranqüilidade a exige. Experimente abandonar horários para toda e qualquer atividade. Tente aprender qualquer coisa nova sem repetição. Nosso aprendizado e nossos ciclos vitais exigem rotinas. Nossa mente, para não ter de sempre pensar no que vai fazer, exige rotina. A rotina é o descanso que precisamos para podermos pelo menos pensar na vida de vez em quando.

Imagine ter de pensar em tudo, sempre, todos os dias? Levantar-se e ter de procurar sua escova de dentes onde ela nunca esteve. Ter de escolher entre várias marcas de sabonetes para o banho, pois a cada dia você utiliza uma diferente. E isso depois de ter se levantado em um horário completamente novo, com o qual você não estava acostumado. Em uma outra cama, em outro clima, em outras regras de convivência. Enfim, nunca ter uma pausa para esquecer-se ou esquecer do que se deve ou não fazer. Ou seja, um mundo bloqueado para a divagação, o devaneio.

Obviamente é mais belo dizer que se detesta a rotina. Em um mundo marcado pela movimentação constante, pela velocidade, é muito mais fácil e claro seguir o fluxo das mudanças incessantes e acreditar que assim, sempre, deva ser a vida. Excitação, agitação, luzes, cores, festas, companhias, pessoas, sexo e prazeres intensos são produtos mais vendáveis do que silêncio, escuridão, estar sozinho, quietude, sutilezas e prazeres íntimos.

Vivemos em uma sociedade dos prazeres bradados aos sete ventos. Vivenciar prazeres estratosféricos, ou assim parecer, e ostentá-los, faz parte de um jogo de comparações infinitas. A única felicidade a vigorar nesta realidade é a felicidade relativa. Ou seja, sou feliz em comparação com a felicidade do outro, com o sucesso do outro. Porque ser feliz, neste sentido, é ter sucesso. É mostrar que é feliz. Mostrar que se tem mais do que o outro. E assim as coisas simples da vida são simplesmente esquecidas, abandonadas. Vivemos em uma sociedade que tem verdadeiro repúdio pela simplicidade, pela conquista íntima e secreta da felicidade.

E a experiência da agitação é tanto mais perigosa quanto menos esforços ela requer. E este é o perigo, por exemplo, do uso de drogas estimulantes:

“A passividade física durante a excitação é contrária ao instinto. (...) projetos construtivos não se formam facilmente na mente de quem leva uma vida de distrações e dissipações, pois neste caso os seus pensamentos serão sempre orientados para os prazeres imediatos mais do que para realizações distantes.” (Russell, p. 62-63).

Vejamos, por exemplo, o hábito de estudar. É necessário paciência, saber lidar, muitas vezes, com um nível de agitação baixo. Pois, quando estudamos, parece que não estamos realizando nada. Há aparente monotonia, recolhimento e solidão, na leitura e no estudo. É necessário paciência, esforço, uma espécie de ação silenciosa, a qual supera as aparências do que seja a excitação e como esta pode naturalmente ser obtida. Estudar, em certa medida, é um ato meditativo, de mergulho, calcado em atenção e esforços de introspecção.

Russell encerra suas reflexões sobre o “aborrecimento e a agitação” da seguinte maneira: “Uma vida feliz deve ser, em grande parte, uma vida tranqüila, pois numa atmosfera calma pode existir o verdadeiro prazer”. (p. 65)

O próprio ato da reflexão, por exemplo, exige tranqüilidade. Paixão, excitação ou agitação não combinam com reflexão. Refletir é, em boa medida, degustar.

Se entendermos que o prazer deve brotar também de uma relação com o tempo. O recolhimento, a espera virtuosa (a paciência) e a capacidade de deixar que o tempo passe são formas sadias de habitar o presente. O prazer emerge de uma certa relação entre contrastes. Aprender a suportar uma certa quota de tédio é aprender tolerar limites. A produção do prazer também depende do acúmulo de tensões, as quais constituem o contraste necessário para que ele emerja, inclusive, com mais intensidade.

O acesso irrestrito ao prazer, se fosse possível, talvez levasse à morte do sujeito que o experimenta. São conhecidos alguns experimentos em que o animal pode obter acesso irrestrito a uma estimulação direta em seus centros de prazer no cérebro. Os resultados são os de animais que deixam de fazer tudo o mais que é vital e gerador de prazer (comer e copular, por exemplo), para somente agir em função da obtenção desta estimulação.

Por outro lado, há também experimentos que demonstram a importância de fontes alternativas de prazer. Quando o fornecimento de determinada droga (no caso, geralmente, a heroína) é irrestrito e desacompanhado de fontes alternativas de prazer, de um ambiente rico em outras estimulações, o animal se mostra mais propenso à drogadição.

Isto nos diz, de algum modo, que a excitação irrestrita é esgotante e contrária à própria sobrevivência do indivíduo. Neste sentido, é possível então dizer que o prazer irrestrito e sem esforço mata.


Referências

Russell, B. (1930/2001). A conquista da felicidade. Lisboa: Guimarães Editores.


Monday, April 14, 2008

A gratidão

Quero começar pelo senso comum. Muitas pessoas se sentem capazes de agradecer por comparação a quem tem menos ou não tem nada, por comparação a moribundos, miseráveis, destituídos, ou a quem perdeu. É muito freqüente ouvirmos sermões do tipo: “Agradeça por ter um corpo perfeito; por ter uma casa, alimento, saúde, por ser parte de uma minoria privilegiada...”. É a alegria pela comparação com as desgraças dos outros. Na verdade, uma forma vulgar e bem baixa de gratidão. Uma gratidão passiva, fruto de espíritos mais invejosos do que virtuosos. Precisam da miséria, da derrota ou da infelicidade alheia para ser felizes. É a alegria por saber que se tem o que o outro não possui. Emerge somente por comparação, por meio de um olhar invejoso e competitivo. É uma forma infeliz de gratidão. Tem o mal do outro como condição.
A gratidão, antes de ser um consolo ou um sentimento de dívida, pode ser um ato. O ato simples de usufruir do que se tem e do que se pode. Ser grato, em seu sentido mais virtuoso, é dar valor ao que se tem. E para isso é preciso ter olhos para o que existe e é capaz de produzir prazer.
Muitos pacientes nos chegam, em desespero, relatando que suas vidas estão em ruínas, aos pedaços. Os primeiros passos, muitas vezes, obviamente, são os de recolher cacos e tentar aproveitar o que sobrou. Esta tentativa, por mais estranho que pareça, é um movimento de gratidão. E ela, se possível, na melhor das hipóteses, deve se dar sem a comparação com uma miséria alheia maior.
quem tenha sido condicionado a se sentir feliz somente por comparação com os outros. Ou seja, ser feliz é ser ou ter mais que o outro, é ostentar superioridade. É uma felicidade social, de coluna social. Para quem foi assim condicionado, fica mesmo muito difícil ser feliz sozinho (no seu bom sentido), no seu cantinho, sem se preocupar demais com os outros. Segundo Russell:
“O homem sensato não deixa de sentir prazer com o que tem pelo fato de alguém ter mais ou melhor. A inveja, na realidade, é uma forma de vício, em parte moral, em parte intelectual, que consiste em não ver as coisas em si mesmas, mas somente em relação com outras. (...) Quem deseja a glória, poderá invejar Napoleão. Mas Napoleão invejou César. César invejava Alexandre e Alexandre, provavelmente, invejava Hércules, que nunca existiu. Não se pode, por conseguinte, combater a inveja por meio da conquista da glória, pois haverá sempre, na história ou na lenda, algum personagem cujos feitos tenham sido mais gloriosos. Pode-se combatê-la, sim, pelo gozo dos prazeres que se nos oferecem, pelo trabalho que tivermos de realizar e evitando comparações com aqueles que imaginamos, talvez sem razão, mais ditosos do que nós.” (2001, p. 84)
A melhor forma de se fazer isso é o usufruto íntimo e discreto do que se tem à disposição, e não do que se teria. É saber gozar em nossa própria simplicidade e intimidade, em um possível mundo não somente feito e construído como uma vitrine. Explico melhor: é olhar menos para a vida ou o sucesso dos outros. É poder habitar um mundo menos permeado por inveja. Um mundo onde a privacidade seja um elemento chave para o desenvolvimento pessoal e o prazer. A sugestão é de Sade: o quarto (a alcova) é o espaço privilegiado para o crime. É na privacidade que a possibilidade de prazer e gozo pode ser diversa e rica.
A gratidão, neste sentido, é as vezes até meio anti-social. Por que é o prazer pelo que é simples e somente nosso. Somente nosso porque ninguém maisvalor. Ou melhor, ninguém mais sabe o valor que aquilo tem. Não é somente uma virtude da memória, mas também da intimidade.
Quanto mais privacidade, maisexcentricidade produtiva e menos excentricidade reativa. É poder ser diferente simplesmente pelo gozo que a diferença possibilita, sem rebeldia, satisfação ou provocação a ninguém. É o prazer afirmado em segredo, em usufruto íntimo.
A intimidade, curtir nosso cantinho, sem olhar para os lados, é um caminho suave de felicidade. É tocar nosso barquinho num ponto isolado e esquecido do oceano e poder, de preferência, compartilhar isso com alguém, ou seja: amando. Gratidão, mas gratidão compartilhada, como tudo o que é do amor. Poder dividir esta alegria a mais, que é a gratidão, é o próprio ato de agradecer. E isto também é uma das formas do amor. Para Comte-Sponville:
“A gratidão é dom, a gratidão é partilha, a gratidão é amor: é uma alegria que acompanha a idéia de sua causa, como diria Spinoza, quando essa causa é a generosidade do outro, ou sua coragem, ou seu amor. Alegria retribuída: amor retribuído.” (2000, p. 147)
Sendo que até aqui somente falei de um tipo de gratidão: a gratidão para com a vida. A gratidão para com os outros seria o segundo tipo.
O segundo caso diz respeito mais precisamente ao reconhecimento de que não somos sujeitos absolutos de nossa própria condição. Ser grato é reconhecer que outras pessoas também participaram na produção de nossa aventurança. Trata-se de uma certa humildade que obriga a reconhecer o outro como parte de nossa alegria. É poder dedicar, compartilhar a graça recebida. Reconhecer o que nos foi dado. Ainda, segundo Comte-Sponville:
Agradecer é dar; ser grato é dividir. Esse prazer que devo a você não é apenas para mim. Essa alegria é a nossa. Essa felicidade é a nossa. O egoísta pode regozijar-se em receber. Mas seu regozijo é seu bem, que ele guarda para si. Ou, se o mostra, é mais para fazer invejosos do que felizes: ele exibe seu prazer, mas é o prazer dele. esqueceu que outros têm algo a ver com isso. Que importância têm os outros? Por isso o egoísta é ingrato: não porque não goste de receber, mas porque não gosta de reconhecer o que deve a outrem, e a gratidão é esse reconhecimento, porque não gosta de retribuir, e a gratidão, de fato, retribui com o agradecimento, porque não gosta de partilhar, porque não gosta de dar. (...) O egoísta é incapaz disso, pois conhece suas próprias satisfações, sua própria felicidade, pelas quais zela como um avaro por seu cofre. A ingratidão não é incapacidade de receber, mas incapacidade de retribuirsob a forma de alegria, sob a forma de amorum pouco da alegria recebida ou sentida.” (2000, p.146)
E um erro muito comum, neste caso, é esperar gratidão. É fazer algo pelo outro , de antemão, esperando que no futuro haja reconhecimento. Fazer, de graça, por amor, esperando gratidão ou retribuição, é tolice. Neste sentido, deve-se fazer sem esperar nada em troca. Isto simplesmente porque a gratidão do outro não depende de nós.
Por outro lado, sentir-se grato, às raias de um sentimento constante de dívida impagável, também pode não ser muito saudável. A gratidão é sempre boa na medida da alegria que a acompanha. E a angústia de uma dívida constante carece de alegria. vi casos em que a gratidão mais expressava sofrimento do que alegria. A pessoa se sentia, na verdade, mais devedora do que grata. Embora se expressasse sempre com a palavragratidão”. Sim, quando somos gratos, podemos assim dizer: “devo muito a você, a fulano ou sicrano”, porém, em muitos casos, não é possível que todos sejam “pagos”, que todas estas dívidas sejam saldados. Não é o caso de pagar, mas de comemorar juntos a alegria da graça obtida.
graças oudívidasque são, por definição, impagáveis. A dívida que temos para com nossos pais, por exemplo. Principalmente se a graça é considerada grande e o papel deles fundamental. Ou se os sacrifícios dos pais, como muito comumente ocorre, foram notáveis. Entretanto, se eles amam os filhos, basta a ar da graça destes. Não tem preço e não se paga.
Porém, vi filhos que carregavam culpa, como se quisessem pagar. Foi o caso de um amigo. Carregava um pesado e martirizante sentimento de dívida para com os pais. Eu também tenho um sentimento de dívida. Mas sinto que a minha felicidade é a melhor forma de retribui-los. Neste caso o “calote” é mais saudável. Empreendimento para saldar uma dívida impossível é suicídio. E é este mesmo, em muitas situações, o destino de muitos eternos culpados e obtusamente gratos: enterram-se em culpas eternas em relação ao que “devem” ou “deveriam” aos pais.
Como bem finaliza Comte-Sponville, a gratidão “se rejubila com o que deve”.
Referências

Comte-Sponville, A. (2000). Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes.
Comte-Sponville, A. (2004). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.
Russell, B. (2001). A conquista da felicidade. Lisboa: Guimarães Editores.