Escrever sobre a literatura de auto-ajuda, enquanto psicólogo, não é nada fácil. Sim, pois este segmento está entre os mais vendidos, faz parte do gosto médio. Se adotarmos uma postura crítica, que contraria o gosto comum, há o risco de sermos vistos como arrogantes, pedantes, invejosos, estraga-prazeres. O sujeito é visto como o que é "do contra". E em muitos casos pode até não ser mesmo uma boa idéia. Concepções contrárias a da maioria são geralmente vistas como uma agressão. Podem ser talvez, em alguns casos, a melhor maneira de se tornar impopular.
Muitas pessoas, senão a maioria, compreendem que a verdade emana sempre das massas. Pensam mais ou menos da seguinte maneira: se todo mundo gosta, é bom. Pois milhões de pessoas juntas dificilmente podem estar erradas. Esta é somente uma concepção de verdade. A idéia de verdade consensual ou coletiva. É a verdade do rebanho. E o rebanho fornece isto: proteção. É muito mais simples e seguro acompanhar o rebanho do que opor-se a ele. O risco também é o de ser visto como masoquista.
Leciono Psicologia, no ensino superior, há oito anos. E quase sempre tive contato com alunos calouros (de primeiro semestre). Muitos deles escolheram o curso de Psicologia com base em alguns livros, supostamente da área, os quais leram anteriormente. E estes livros são geralmente manuais de auto-ajuda. Para quem lida com calouros, no ensino superior privado, este fato não é surpresa alguma.
Começam o curso muito empolgados e envolvidos com estes livros que leram. Chegam com a impressão de que a Psicologia teria de ser ou funcionar como os manuais de auto-ajuda. Este ano percebi que muitos chegaram comentando o tão falado filme, “O segredo” e alguns autores de auto-ajuda, tais como Augusto Cury, por exemplo. O primeiro é um fenômeno de vendas da auto-ajuda em nível internacional. O segundo é um dos autores brasileiros mais vendidos no Brasil há mais de dois anos.
Segunda reportagem da revista Veja (edição 1938) de 11/02/2006, Cury foi o escritor brasileiro que mais vendeu no país em 2005: “Três obras suas – Pais Brilhantes, Professores Fascinantes, sua incursão na pedagogia, e os motivacionais Nunca Desista de Seus Sonhos e Você É Insubstituível – aparecem entre os best-sellers do ano passado, na lista publicada nesta edição de VEJA”. E em 2006 não foi muito diferente: também foi o autor brasileiro de auto-ajuda mais vendido.
Em uma busca rápida pela Internet, a reportagem mais recente que encontrei sobre suas vendas foi da revista “Isto é. Gente” de maio de 2007, e ela contabiliza cerca de 5 milhões de livros vendidos somente no Brasil, fora o quem tem sido traduzido para outros idiomas e vendido em outros países. Resumindo, este psiquiatra, com graduação em São José do Rio Preto e residente em Colina, no interior do estado de São Paulo, é o Paulo Coelho da auto-ajuda.
Porém, antes de falar mais precisamente de Augusto Cury, reitero a justificativa para tal. Como já disse, escrever, de modo crítico ou sensato, sobre a literatura de auto-ajuda é talvez arriscado. Porém, ao pensar na formação de nossos alunos, não vejo como me furtar a esta tarefa. O aluno de Psicologia chega até nós, professores, exaltando “O segredo” ou Augusto Cury.
Dizem que estes livros são excelentes ou que revolucionaram sua vida. Muitas vezes pedem para que nós, professores, os leiamos também, para que saibamos o quanto são bons, o quanto são válidos e verdadeiros. Sentem um imenso e compreensível desejo de dividir o que pensam ser o ápice do conhecimento e da prática psicológica conosco.
Aí, porém, ocorre um choque. E eu sempre tento adiar este choque. Tento fazer de tudo para não parecer intolerante ou intransigente. Primeiro escuto. E depois começo a ponderar se devo ou não ler. Foi o que fiz com Augusto Cury e com os filmes “O segredo” e “Quem somos nós”. Destes dois filmes eu já falei em um artigo anteriormente postado aqui. Ficou, porém, faltando nosso querido Cury.
Lembro-me bem, foi no ano passado. Uma aluna do primeiro ano chegou com o livro “Nunca desista de seus sonhos”, dizendo que era excelente. Olhei desconfiado. Cheguei a manifestar minhas suspeitas, a começar pelo título, o qual definitivamente, para começo de conversa, já não me agradara. Respirei fundo e aceitei lê-lo. Pensei: não farei parte do segmento, geralmente visto como “arrogante”, dos que não leram e não gostaram.
Li o tal livro. E para minha surpresa, não o achei simplesmente fraco ou superficial. Fiquei chocado com tanta baboseira, senão mentiras mesmo. Fiquei chocado com o abuso que autores como este fazem da inocência e fragilidade de milhões de pessoas. Estas, por sua vez, leigas ou pouco informadas acerca de assuntos em que este tipo de escritor manipula ou até mesmo tripudia.
Mas também quero deixar bem claro que minhas críticas a este tipo de literatura não valem para os pacientes que atendo. Explico melhor. Se um paciente chega até meu consultório dizendo que sua vida melhorou radicalmente ou foi salva por um livro deste gênero, ou que amou a leitura deste ou daquele livro de auto-ajuda, não vejo motivo algum para a crítica que seja. Se, por exemplo, um livro de auto-ajuda contribuiu ou tem contribuído para a melhoria da vida do paciente, este progresso deve ser aproveitado, reforçado e não o contrário.
Em grosso modo, eu diria o seguinte: cada um se ajuda como pode. As pessoas têm gostos e modos diferentes de se ajudar e encontrar alternativas de bem-estar e saúde na vida. Fico, portanto, feliz se meus pacientes estão gostando e se motivando com alguma coisa. Respeito e torço por seu bem-estar e até agradeço aos Augustos Curys da vida que possam estar ajudando-os nesta empreitada.
Portanto, minhas críticas à literatura de auto-ajuda não são feitas a pacientes. Aliás, penso que toda e qualquer manifestação mais enfaticamente ideológica, em consultório, é contra-producente. Que as discussões ideológicas fiquem do lado de fora do consultório. Que racionalizações, afiliações e militâncias, fiquem bem longe dali. Terapeuta nem paciente devem fazer da sessão palanque ou púlpito. O objetivo maior de uma psicoterapia é a conquista de um bem-estar consistente e possível para o paciente. Leu auto-ajuda? Tirou bom proveito? Fez bem? Mesmo? De fato? Este bem é duradouro e real? Se a resposta for sim, não há o que ser discutido. Bola pra frente.
E que fique mais claro ainda: a questão é radicalmente diferente ao lidar com alunos ou profissionais em Psicologia que adotam manuais de auto-ajuda como guia ou padrão para sua área de atuação. Aí o negócio fica sério e já não tem mais graça alguma. Puxarei sim a orelha. Questionarei, no ato. Deixarei claro que pretendo ouvir e compreender o que este aluno viu de tão sensacional neste tipo de livro. Mas não jogarei meu espírito crítico no lixo.
Estudantes e profissionais são os representantes vivos da Psicologia. E a última coisa que a Psicologia precisa é ser representada ou confundida com literatura de auto-ajuda. Havendo inconsistências, equívocos ou até mesmo má fé, isto deve ser apontado. E é o que ocorre em abundância neste tipo de livro. Todo e qualquer profissional bem instruído dificilmente irá discordar do que falo. É uma literatura perigosa. Transmite uma falsa imagem do que seja o conhecimento e as práticas da Psicologia.
Os livros de auto-ajuda, além de conter uma série de equívocos e distorções, nitidamente mentem ao prometer o que não é possível. As promessas infundadas são sua maior moeda de troca. Geralmente, quanto mais se promete, mais vale um livro de auto-ajuda.
Vale a pena ler a divertida crônica de Cleido Vasconcelos: “Por que os Livros de Auto-ajuda não ajudam!”:
Ressalto aqui um de seus trechos:
“Acho que palestras e livros de auto-ajuda são como um copo de leite para quem tem azia ou úlcera, produz um alívio imediato, mas logo, logo, a dor perfurante das tripas volta em dobro. Em dobro porque, agora, mesmo sabendo que sua vida é um queijo, você continua não conseguindo resolver nada. E, pior, por causa da maldita palestrante (ou do rato autor do livro), você agora acha que as coisas são simples, que a vida é simples, que nossos problemas são simples. Pode até ser que a vida seja simples, mas nós não somos!
Primeiro, eles pensam que podemos fazer com nossas vidas o que fazemos com nosso orçamento doméstico. Que tudo se resume a uma questão de débitos e créditos emocionais. Entradas, saídas, home banking do nosso viver. Depois, eles resumem tudo em algum símbolo. Um queijo, uma cadeira, um copo d'água. Um todo imenso se transforma numa pequena metáfora (...)”
Mas não deixem de lê-la inteira. Além de bem-humorada e leve, é muito lúcida.
Também realizei algumas incursões na Internet, procurando por pesquisas sistemáticas sobre o tema. Encontrei pouca coisa. Creio que seja um tema que ainda demanda bastante reflexão e pesquisa. Se milhões de pessoas consomem este tipo de livro, é fato importante a ser pesquisado, não há dúvidas. Seja pela Psicologia, Ciências Sociais ou qualquer projeto que formule boas questões para este fenômeno.
Alessandro Vieira dos Reis, colunista também aqui do Redepsi, possui um excelente blog dedicado exclusivamente à literatura de auto-ajuda. Vale também a pena conferir. Também é divertido, leve e lúcido:
Em seu texto “Psicólogos devem ler auto-ajuda?”, defende que a leitura detida não é necessária. Porém, o psicólogo deve informar-se minimamente sobre este tipo de livro e quais estão circulando, pois:
“1) o conjunto desses livros fornece uma radiografia dos problemas atuais. Por exemplo, se muitos casos de anorexia aparecem, do dia pra noite surgem diversos livros de auto-ajuda sobre o tema.
2) os clientes do psicólogo muitas vezes vão chegar até ele com conceitos e idéias que extraíram desses livros, e o psicólogo precisa entender essas bobagens para se comunicar com o cliente.”
Seu tom, apesar de jocoso, nos estimula a pensar. Aliás, tenho observado quase que uma constante nas críticas aos livros de auto-ajuda: bom-humor e leveza. Por outro lado, para os fiéis a este tipo de literatura, trata-se somente de pessimismo, sarcasmo, derrotismo, inveja.
Cury. Cure-se dele.
Esta segunda parte do texto, centra-se em Augusto Cury. Por quê? Porque é o autor de auto-ajuda, brasileiro, mais lido no país. Pode-se dizer que é hoje o representante maior deste gênero.
Li dois de seus livros: “Nunca desista dos seus sonhos” e a “Inteligência multifocal”. O primeiro por sugestão de uma aluna e o segundo por sugestão de uma paciente. São livros importantes deste autor. O primeiro por ser seu terceiro livro mais vendido (Reportagem da “Isto é, Gente”). E o segundo por ser tido como sua “obra-prima”, sua obra fundamental, a qual concentra seus conceitos fundamentais.
E faço a você, leitor, a mesma sugestão que os leitores de Cury fariam, porém com um outro propósito: para que você entenda melhor, de fato, do que se trata. Para que compreenda melhor os atentados ao bom senso que este autor perpetra. Portanto, se puder, leia um deles. Não fique somente nas orelhas. E perca seu tempo, se arrependa profundamente de dedicar algumas horas a tolices, ou delírios megalômanos, que vendem milhões. Ou então, somente para ter uma boa amostra, acesse o site “You tube”, e veja, por sua própria conta, como o sujeito se sai nas entrevistas.
O arrependimento de ter despendido algumas horas lendo tanta asneira já foi grande. Agora imaginem o de estar aqui escrevendo e tentando fundamentar algo minimamente responsável sobre isto. Também é grande. Porém, senti que não havia mais alternativas. Havia chegado a hora de escrever algo sobre o maior representante, hoje, da literatura de auto-ajuda no Brasil.
Cansei de deixar aluno chateado com minha pessoa, ao tentar fundamentar ou informá-los dos inúmeros equívocos presentes nestes livros. Foram tantos que fiquei chocado. Percebi que compensa mais escrever a respeito. É talvez triste constatar, mas é verdade: a palavra escrita e publicada ainda vale muito mais do que a falada. Cury que o diga. Ou seja, a publicidade, o estar em evidência, em nosso sistema social, vale mais do que a verdade.
Alerto, cito diversas referências. Isto para que meus esforços sejam poupados. Não me sinto na obrigação de me estender mais do que me estenderei. E também não me sinto na obrigação de ficar citando inúmeras passagens de seus livros. Assistam as entrevistas no “You tube”, leiam algumas páginas de seus livros, os artigos já mencionados, e tirem suas próprias conclusões.
E tenho algumas conclusões sim: é assustador saber que o leitor brasileiro é embalado por conversas tão tolas, desinformadas e irresponsáveis. São disparates e sandices toscas que fazem sucesso. Cury tira da cartola sentenças repletas de metáforas (até que razoáveis, porém de conteúdo, de modo geral, totalmente equivocado) sobre assuntos dos quais nem é capaz de produzir uma definição sensata. Além de toda a perfumaria, de toda a falta de modéstia e autopromoção patética, como nos trechos abaixo:
“Entretanto, após publicar o livro recebi outro golpe. Quase ninguém entendeu meus textos de tão complexos que eram. Os assuntos relativos à construção dos pensamentos, à formação da consciência e à estruturação do "eu" eram novos e muito complicados. Até psiquiatras, psicólogos, educadores tinham dificuldade em compreendê-los.” (Cury, 2004, p. 126 )
“Falo com humildade, mas, creio, fiz importantes descobertas que provavelmente reciclarão alguns pilares da ciência durante o século XXI.” (Cury, 2004, p. 115)
Ou, em entrevista à Veja: “Cury não dá muita atenção aos críticos: "Quase ninguém entendeu minha teoria, de tão complexa que ela é"
E também as promessas infundadas. Coisa que mais parece conversa de vendedor, como podemos observar logo no prefácio do livro “Dez Leis para Ser Feliz”: “Neste livro, Dez leis para Ser Feliz, vou apresentar princípios para que a vida se torne um grande show - um espetáculo de felicidade e sabedoria”(Cury, 2003).
O sujeito se diz cientista, sem nunca ter produzido nada de sistemático ou qualquer produção séria que possa valer uma mínima fração do que isso seja. Desconhece conceitos básicos dos vários assuntos para os quais se advoga como um profundo entendedor. Não leu nem o que é básico sobre inteligência, por exemplo. Não teve nem um pouco de hombridade para abrir um pequeno manual de Psicologia, que seja, para poder tratar do assunto com o mínimo de respeito necessário.
É alarmante. E até antiético. Porque falta profundamente com a verdade e com o respeito pela inteligência do leitor. Se não mente descaradamente, é uma criança que ingênua e comicamente verbaliza tolices.
Cita livros de alguns autores sem mesmo tê-los folheado ou mesmo saber de que assunto eles tratam. Lembro, em um desses dois livros que li, de uma citação que ele faz de Platão. Seu texto, o parágrafo em questão, falava de, digamos, abobrinha e tomate, porém com uma nota de rodapé para o mesmo. Na nota continha a citação de “A República”, de Platão, a qual, por sua vez, não tinha qualquer relação com o referido. Fiquei estarrecido.
E pude perceber, assim procede com qualquer citação. Neste caso, foi precisamente assim: “A vida inteira precisamos de graça e gentileza (Platão, 1985)” (Cury, 2004).
Perguntei a mim mesmo: por que diabos ele citou “A república” de Platão? Quem sabe mais ou menos do que trata o referido livro de Platão, também ficaria estarrecido como eu. Pois é somente uma ridícula citação exibicionista para mostrar que é leitor de Platão, o que, por sua vez, demonstrou, para mim, o contrário. Isso, claro, se o leitor soubesse minimamente do que trata o referido livro do antigo filósofo grego, ou qual é a real finalidade de se citar alguém.
A fórmula é a seguinte: o importante é falar de gente importante. Citar autores importantes, mesmo que sem utilidade nenhuma, mesmo que de modo fraudulento. Há esnobismo no procedimento. Porque citar alguém importante é chique. Sai de cena a razão e é entronada a autoridade. Deixa de se argumentar para botar a fala de alguém importante no lugar, e assim calar toda e qualquer objeção.
Contudo, não há nem mesmo uma argumentação inicial. Cury, de modo geral, produz enunciados vagos ou triviais e os sacraliza com a benção da grife de alguém importante. Ou seja, diga qualquer coisa e bote o nome de alguém importante no final.
Cury possui um prazer especial em citar pessoas que foram grandiosas. Mas parece juntar todas elas em uma mesma panela para que elas simplesmente forneçam autoridade ao que ele deseja dizer, mesmo que não haja relação alguma com o conteúdo que enuncia.
“Moisés, Maomé, Buda, Confúcio, Sócrates, Platão, Sêneca, Abraham Lincoln, Gandhi, Einstein, Freud, Max Weber, Marx, Kant, Thomas Edison, Machado de Assis, Sun Tzu, Khalil Gibran, John Kennedy, Hegel, Maquiavel, Agostinho e muitos outros foram grandes sonhadores.
Estes homens mudaram a história porque tiveram grandes projetos. Tiveram grandes projetos porque viveram grandes sonhos. Seus sonhos aliviaram suas dores, trouxeram esperanças nas perdas, renovaram suas forças nas derrotas (Cury, 2004, p. 10-11)”
Coloca um monte de gente importante num lugar só para demonstrar que possui conhecimento. Além de não possuir função alguma para a fundamentação lógica de seu argumento, transparece exagero, equívoco. Pois de onde tirou, por exemplo, que Freud, Buda ou mesmo Maquiavel, teriam sido grandes “sonhadores”?
Estes três personagens históricos estão intimamente relacionados com a desilusão. Por que diabos seriam eles “sonhadores”? Freud nem Buda, com certeza. Para o primeiro, sonhar para aliviar dor é fugir da realidade, é um recurso patológico. E para o segundo é melhor não se esperar nada da vida, do outro, nem do futuro. Portanto, não há sentido algum em classificar estes autores como o que ele chama de “sonhadores”.
Há, também, outros indícios de sua irresponsabilidade e exibicionismo imodesto: o título de doutorado que ele não possui, na capa do “Inteligência Multifocal”. O sujeito, ou sua editora, pouco importa, tem o disparate de assim inscrever seu nome na capa: “Dr. Augusto Cury”.
Alguém poderia objetar que é somente uma questão de costume na forma de tratamento, pois se trata de um médico. Mas, ainda, por outros indícios, podemos facilmente perceber que não. É somente mais uma forma que ele encontra para se impor perante um público muito desinformado, o qual consome livros mais pela embalagem e por modismos do que pelo conteúdo.
Pois existem autores populares, mais consistentes e responsáveis do que ele, também médicos, que não fazem uso desta tacanha estratégia de autopromoção. Só para citar um, bem conhecido: Drauzio Varella. Cury, é fácil perceber isso, é daqueles que sempre exigem o “doutor” na frente do nome. Convenhamos: comportamento que é resquício de um Brasil analfabeto e escravista. Acerca desta história tenho até uma outra, muito interessante, a qual vivi pessoalmente:
Um sujeito, bacharel em direito, devia dinheiro à minha mãe. E ela já havia me dito que ele estava utilizando de diversos meios, que não os legais, para não pagá-la. Este sujeito fazia, por sinal, questão de ser apresentado ou tratado como “doutor”. Minha mãe sempre se referia a ele como o Dr. Luis (nome fictício). Era Dr. Luis pra cá, Dr. Luis pra lá. E ela, que não havia concluído nem mesmo o ensino fundamental, ia, com muita sabedoria, levando o Dr. Luis no banho-maria.
Eu já não tinha tanta paciência. Hoje tenho mais. Não chamava ninguém de doutor, a não ser, por questão de respeito aos costumes, o médico que estivesse no momento cuidando de minha saúde. Eu ficava indignado com essas formas obtusas de tratamento que nossa história de opressão ainda insiste em perpetuar.
Hoje já faço como minha mãe. Mesmo tendo doutorado, e sendo de fato doutor, não exijo que assim me chamem, nem reluto para que assim não o façam. Uma hora a gente se cansa de explicar. Chamo de doutor a quem quer que assim o deseje. Se o Seu Zé da esquina pedir para ser chamado de doutor, assim o será. Estou pouco ligando pra isso. O mais importante é que isso não importa, e que o Seu Zé da esquina me pague o que me deve, se este for o caso.
Pois bem, um dia atendo o telefone, e quem era? “Ah, sim, o senhor deseja falar com minha mãe? Seu nome, por favor?”. “Doutor Luis...”, respondeu. Era o coisa ruim, o próprio. “Doutor Luis?”, perguntei. “Sim, meu caro, Doutor Luis”. “Perdoe-me a pergunta, mas, por curiosidade, o senhor tem doutorado?”. Eu já tinha o título de mestrado e ainda achava interessante fazer tal pergunta, problematizar esta questão. Dr. Luis, porém, ficou ofendido com a pergunta. Será que o Cury também ficaria?
Foi logo dizendo que defender um processo jurídico, como advogado, era o equivalente a produzir um doutorado, “que a defesa de uma causa equivalia a um doutorado”. “Não equivale não. É doutor aquele que defendeu uma tese de doutorado”, respondi. Ficou ainda mais ofendido e perguntou rispidamente: “E você, é o quê?”. “Não sou nada”, respondi. “O que você faz da vida? Trabalha com quê?”, reiterou com mais precisão. “Não, não sou nada. O senhor aguarde um momento, que chamarei minha mãe (...) Mãe, telefone para a senhora. Sr. Luis.” E fiz questão que ele ouvisse. Eu não o chamaria, em hipótese alguma, de doutor.
Inflexibilidade pela qual não respondo mais. E o Dr. Luis não perdoou, passou uns cinco minutos me debulhando para a minha mãe ao telefone. E depois ainda tive de ouvir mais uns minutos de colérico e inflamado sermão da progenitora. Para ela ele continuou como Dr. Luis. O Dr. Luis que ela acionou juridicamente e teve, apesar da empáfia, de pagá-la com todos os juros e correções devidas. Ele não possuía metade da sabedoria dela.
Mas continuemos com o Dr. Cury. Como eu dizia, há outros indícios de sua autopromoção inverídica. Além de ser apresentado como doutor, exige sempre também a qualificação de cientista. O que ele não é, nem nunca foi. Pois nunca desenvolveu pesquisa sistemática alguma, nem nunca foi aceito em qualquer instituição respeitada para que pudesse assim o fazer.
No “Nunca desista de seus sonhos” pude ler e me surpreender com mais uma de suas sandices: Cury se orgulha de nunca ter sido aceito em um programa de mestrado. Relata, em “Nunca desista de seus sonhos” que o projeto de sua “Inteligência Multifocal” não fora aceito em diversas instituições de pesquisa, nas diversas universidades em que ensejou realizar um mestrado.
Diz, como já foi citado, que o saber constituído ainda não estava pronto para compreender suas revolucionárias e geniais contribuições para o conhecimento da humanidade. E este é mesmo, como vimos, o seu tom: messiânico, megalômano.
“Inteligência multifocal”, sua obra-prima, é, por sua vez, um amontoado de baboseiras e equívocos grosseiros, sem qualquer fundamento empírico, bibliográfico, lógico, e nem mesmo profundidade. Em entrevista à revista Veja, Renato Zamora Flores, professor do departamento de genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e uma autoridade na análise de imposturas científicas, assim diz sobre o livro em questão:
"Os únicos trechos mais ou menos aproveitáveis são versões pobres das idéias de cientistas como o neurologista António Damásio. O resto é pseudociência".
E para parecer profundo, quando assim o deseja, Cury faz o que é clássico: turva as águas. Turva as águas para parecer que são profundas. Enrola, obscurece, para transformar sua complicação proposital em verdade. Protege-se tanto na desinformação de seus leitores quanto em sua obscuridade calculada.
Para finalizar, cito um trecho do artigo da Veja sobre este autor:
CIÊNCIA DE ARAQUE
As baboseiras de Inteligência Multifocal, obra
em que Augusto Cury expõe suas "teorias"
PESQUISA PRECÁRIA
A BABOSEIRA: "Não usei os levantamentos bibliográficos nem uma teoria prévia como suporte de interpretação, pois a teoria que desenvolvo é totalmente original".
ONDE ESTÁ O ERRO: é a pesquisa bibliográfica que garante que um cientista não vai repetir o que outro já disse. Reivindicar originalidade sem ter freqüentado os livros é uma tolice.
PENSAMENTO CONTRADITÓRIO
A BABOSEIRA: "Os computadores jamais passarão de escravos de estímulos programados, ainda que incorporem um processo de auto-aprendizagem"
ONDE ESTÁ O ERRO: Cury ignora todas as discussões teóricas sobre inteligência artificial – e ainda resvala numa contradição em termos: se um computador for capaz de aprender, não será mais escravo da programação.
CONFUSÃO DE CONCEITOS
A BABOSEIRA: "A inteligência e a personalidade representam, aqui, termos equivalentes"
ONDE ESTÁ O ERRO: personalidade diz respeito às características que distinguem um indivíduo do outro, enquanto inteligência se refere à capacidade de processar informações. Na literatura científica, são conceitos distintos. Misturá-los só produz confusão.
CURAS MILAGROSAS
A BABOSEIRA: "Muitos casos de doenças psíquicas de difícil tratamento, inclusive de pacientes autistas, têm sido resolvidos pela terapia multifocal"
ONDE ESTÁ O ERRO: se fosse verdade, seria caso para Nobel de Medicina: não há cura para o autismo.
Referências na Internet
“O mestre da imodéstia”. Artigo da Revista Veja sobre Augusto Cury:
Lista dos livros mais vendidos no Brasil em 2006:
Reportagem da “Isto é, Gente”:
Blog de Alessandro V. dos Reis sobre auto-ajuda:
http://bestsellerdavez.blogspot.com/
Livros de Augusto Cury citados
Cury, A. J. (1999). Inteligência multifocal. São Paulo: Cultrix.
Cury, A. J. (2003). Dez Leis para Ser Feliz. Rio de Janeiro: Sextante.
Cury, A. J. (2004). Nunca desista de seus sonhos. Rio de Janeiro: Sextante.