Monday, November 08, 2021

Os limites da comunicação não-violenta (CNV)

Comunicação não-violenta não resolve tudo. 

É o que existe de mais eficaz para se quebrar com o ciclo da violência, nas interações em que é possível ocorrer um mínimo de comunicação. Contudo, há alguns casos nos quais algumas pessoas aumentam sua agressividade, mesmo quando são abordadas da forma mais pacífica possível, inclusive com as técnicas de comunicação não-violenta.

Eu fazia parte de um grupo virtual, no qual havia umas 40 pessoas, pelas quais, em sua maioria, eu tinha grande apreço e respeito. 

Porém, infelizmente, houve um dia em que um das pessoas do grupo ficou bastante irritada comigo e muito agressiva.

Eu estava transtornado com um evento trágico que havia ocorrido em alguma cidade do Brasil, e que estava sendo noticiado pelos jornais. E eu também estava revoltado, porque aquele aquela tragédia podia ter sido evitada. Havia claramente negligência e egoísmo envolvidos.

Porém, para tentar sensibilizar as pessoas para aqueles fatos, e do que podia ser feito, eu narrei a tragédia da forma mais realista possível.

E meu texto narrativo atuou como um gatilho para algumas das pessoas mais sensíveis do grupo. Era como se esse texto contivesse imagens muito fortes. Alguns ali não deram conta de ler sem ficar muito abalados.

Em poucas horas, em privado, comunicaram-se entre si, sobre meu texto, que ele continha excessos, que talvez eu não devesse me expressar daquele modo, ou que eu deveria ter deixado ali um aviso de gatilho para os mais sensíveis.

Até aí tudo bem. Porque qualquer pessoa mais serena teria plenas condições de me comunicar em privado, ou mesmo em público, dentro do grupo, de forma polida, como eu deveria ter procedido, como eles gostariam que eu tivesse procedido. Desse modo tudo teria sido resolvido da forma mais tranquila possível.

Porém  infelizmente, não foi isso o que ocorreu. Um dos membros do grupo tomou a palavra, em público, e me repreendeu de modo muito ríspido e truculento.

Confesso que nos primeiros minutos eu simplesmente não sabia o que falar ou o que responder. Fiquei bastante atônito com aquela reação tão desproporcionalmente agressiva. Foi assim que eu senti o contexto do ocorrido. Pode até ser que eu tenho me enganado. Mas meu sentimento, até hoje, é o de que a agressividade daquela pessoa foi muito grande e muito desproporcional.

Então a primeira coisa que fiz, sempre dentro da perspectiva de uma cultura da paz, foi a de pedir as minhas sinceras desculpa para todos os presentes, em virtude dos possíveis efeitos que aquele texto poderia ter provocado na sensibilidade de alguns.

Contudo, para a minha surpresa, isso fez com que essa pessoa aumentasse ainda mais o nível de sua agressividade. Ela pegou minha resposta e retrucou, fazendo trocadilhos e jogos de linguagem, ao ponto de transformar nossa interação, em público, em uma grande humilhação.

Eu me senti totalmente massacrado e humilhado. Confesso que tive muita vontade de também partir para a agressão franca. Eu teria poucas e boas para escrever para aquela pessoa. Mas, como venho há alguns anos fortemente cultivando uma cultura da paz, achei melhor me conter, e continuar com a minha pobre e quase inútil comunicação não-violenta.

Escrevi mais umas duas frases, em tom ainda bastante apaziguador, e me despedi do grupo.

E depois, como em outras vezes em que isso ocorreu em minha vida, eu sentei e chorei. Porque é muito difícil ser tão intensamente agredido, não reagir, se sentir absolutamente humilhado, em público, e ainda assim achar que não vamos sentir nada. Machuca, machuca muito. Dói, e fica doendo durante muito tempo. Isso ocorreu há quase dois anos, e quando começo a me lembrar ainda sinto a mesma dor. 

E uma das coisas que também fiz questão de fazer foi a de bloquear essa pessoa, em pelo menos uma de minhas redes sociais, que era a qual utilizávamos algumas vezes para nos comunicar, das poucas vezes em que nos comunicamos em privado, na vida.

Meu sentimento é o de que essa pessoa foi muito covarde. E eu jamais diria isso a ela ali, naquele contexto, porque não é assim que se faz uma comunicação não-violenta. Não é assim se faz redução de danos em interações com potencial para a violência. 

Ela percebeu que eu não revidei, que não houve troca de agressões, que houve um pedido de desculpas, e mesmo assim intensificou sua agressividade em cima de mim.

Eu somente soltei mais duas ou três frases, e me despedi do grupo. E não pretendo voltar, apesar da grande maioria das pessoas ali serem fantásticas.

É um grupo de WhatsApp, e eu detesto grupos de WhatsApp. Só faço parte mesmo dos grupos de trabalho, dos quais não há como fugir. E eu estava mesmo um pouco deslocado naquele grupo, me sentindo um completo estranho. Eu não conseguia me manifestar ou me sentir como uma pessoa que agradasse às outras naquele contexto, apesar, como já disse, da grande maioria delas serem pessoas fantásticas.

Horas depois de minha saída, alguns dos membros me enviaram mensagens, em privado, perguntando como eu estava. Perceberam que a agressão havia sido grande. Tiveram compaixão.

Mas ninguém, pelo visto, teve coragem de intervir enquanto as coisas estavam ocorrendo, dentro do grupo. Deixaram rolar, talvez pensando que eu fosse me defender, possivelmente revidando. Não foi isso o que ocorreu, e a humilhação foi completa. 

E quem está lendo esse texto pode até pensar que sou um completo idiota, uma pessoa resignada e tola, ou qualquer coisa parecida. Mas a cultura da paz que conheço não é algo que tirei da cartola, não é uma opinião. Está fundamentada pela contribuição de trabalhos acadêmicos. É uma técnica amplamente aceita e adotada, como instrumento de base para abordagens em mediação de conflitos e consultas com pacientes em variadas especialidades. E serve também para a vida diária.

Porém, como já disse, não é infalível. Diante de padrões de comportamento covardes e sádicos talvez seja completamente inútil, e possivelmente em muitos desses contextos não exista outro modo de nos comportarmos. Porque simplesmente revidar é sempre mais arriscado, e provavelmente mais danoso. A agressividade mútua pode se intensificar. E dependendo do contexto, e das pessoas envolvidas, os danos podem ser muito grandes e irreversíveis.

Uma das melhores coisas a se fazer em situações como essa é fugir, escapar, o mais rápido possível. E foi, de certo modo, o que fiz. 

Sim, dói, dói bastante. Mas minha experiência de vida me diz que foi o melhor a ser feito. Em várias outras situações, nos últimos 30 anos, atuei de modo bastante agressivo, conseguindo inclusive agredir muito mais a quem me agrediu, revidando, e os resultados, as consequências, não foram nada boas. Foi muito mais doloroso do que ser agredido, não revidar, e fugir. 

É isso também não quer dizer que eu sempre consigo atuar de modo pacífico. Algumas vezes eu revido, e parto mesmo para a agressão, o que deixa inclusive algumas pessoas bastante assustadas, porque não imaginavam que eu era capaz de tanta violência verbal e termos de bem baixo calão.

Porém, conscientemente, se alguém me perguntar qual é a opção que eu geralmente tento perseguir, ela é esta, a de uma cultura da paz e da comunicação não-violenta. E, sim, em muitos casos eu prefiro fugir. Podem me chamar de fujão.

Saturday, November 06, 2021

A questão do respeito na relação com os pacientes

Quando algumas pessoas, que não têm formação na área de saúde mental, aparecem para trabalhar no CAPS, costumam ocorrer alguns problemas. 

Tenho e tive colegas que estavam acostumados a trabalhar em hospitais, e quando chegaram ao CAPS se assustaram com algumas coisas. Nas reuniões era, e ainda é, comum reclamarem de que alguns pacientes foram desrespeitosos, por exemplo. E muitos, para tentar se impor, chegam até mesmo a dizer ao paciente a clássica frase: “Me respeite!”. Ou então alertam: “Você está me desacatando! E desacatar servidor público é crime!”.

Em algumas situações, durante essas a reuniões, eu digo que, em quase 30 anos de prática profissional, eu jamais senti que algum paciente estava me desrespeitando. Contudo, logo após me expressar desse modo, é nítida a expressão de incredulidade desses colegas, e alguns inclusive fazem questão de tentar mostrar que eu estou sendo desonesto ou mentindo.

É uma situação tensa e difícil, mas sempre mantive a tranquilidade, e tento dizer que, segundo minha formação técnica, e minha experiência profissional, eu não vejo o menor sentido em se afirmar que um paciente está me desrespeitando, e muito menos chegar ao ponto de ter que dizer para esse paciente algo como o clássico “Me respeite!”.

Lembro-me inclusive de uma ocasião em que alguém pregou alguns cartazes nas paredes do CAPS, com aquele aviso da lei do desacato. Aquilo me deixou suficientemente irritado para que eu imediatamente tirasse todos esses cartazes das paredes e os jogasse no lixo. 

Isso ocorreu durante o período em que essa lei havia sido extinta. Porém em junho de 2020 o STF decidiu que é crime. A votação não foi unânime, e a maioria dos ministros defenderam que não há incompatibilidade da lei do desacato com os direitos humanos de liberdade de expressão. Então ficou decidido que a população tem o direito de expressar o que pensa diante de servidores públicos, mas ninguém tem o direito de humilhar, injuriar ou agredir fisicamente o agente público.

Estou há 11 anos no SUS, atendo inúmeras pessoas diferentes todos os meses, e nunca nem mesmo senti que algum paciente alguma vez me desrespeitou. Porque meu sentimento é o de que aquela pessoa está em uma instituição de saúde, manifestando seu sofrimento, adoecimento e vulnerabilidade. Então o que temos nas instituições de saúde é um contexto muito específico, que facilita arroubos e excessos, e pode assim ocorrer de alguns pacientes serem mais ríspidos, hostis ou até xingarem algum servidor público.

E não é somente ter plena consciência disso que faz com que eu fique mais tranquilo e tolerante diante de pacientes e familiares mais agressivos ou hostis. Outra coisa que sinto é também que há uma assimetria muito grande entre os servidores e a população atendida. 

O servidor, na grande maioria das vezes, se encontra em uma posição de controle de muito mais poder do que o usuário do serviço. Ter plena consciência disso, e ter uma formação consistente em escuta empática e/ou comunicação não-violenta é fundamental.

Então, para finalizar, eu diria que me sinto muitíssimo tranquilo e seguro com minha formação, a qual tem me permitido, em muitos anos de atuação, quase sempre conseguir, com facilidade, contornar esse tipo de situação um pouco mais delicada. 

Quem tem uma formação técnica mais consistente quase sempre consegue fazer com que aquele paciente, ou familiar, que chegou mastigando marimbondos, saia do atendimento com gosto de mel na boca.