Tuesday, October 22, 2019

Mundo virtual e mundo não-virtual

É uma vida contrastante. Estar aqui nessa bolha, compartilhando o que é comum, é muito confortável. E de vez em quando, claro, aparece um ou outro revisor, alguém que se apresenta com o contraditório. Mas o espaço virtual permite ponderação, permite que respiremos fundo, que pensemos antes de nos pronunciarmos. E aí de repente eu acordo aqui das redes sociais, e me vejo em uma reunião de trabalho, tendo que enfrentar mentalidades extremamente mesquinhas e retrógradas, ou então mesmo ali, no convívio com meus vizinhos. E ontem, quando acabei perdendo a compostura, foi porque eu já estava um pouco cansado de me sentir rodeado de pessoas que ainda apoiam fascistas. Eu tenho me sentido sufocado pelas pessoas que ainda estão coadunando com as atrocidades que estão ocorrendo. No mundo real vivo com bastante frequência rodeado por apoiadores desse governo abominável. Às vezes é sufocante.

A realidade presa na bolha de sabão

No que se transformou a realidade, na era da pós-verdade? Também numa bolha. Numa frágil bolha, que alguns poucos tentam habitar. E ela dura isso: o tempo de uma bolha de sabão. Se despedaça diante da consistência do poder, que está mais, muito mais, nas mãos de pastores evangélicos do que no trabalho de pesquisadores ou divulgadores científicos, que quase ninguém sabe o que são, quem são. Somos somente bolhas que se desfazem, constantemente, aqui e ali. Para quem está no poder é somente bonitinho ou irritante. Pouco ou quase nada além disso.
Uma hora a tristeza vem e bate na porta, e regurgita o desespero de se perceber como um completo estranho no deserto da vida.

Saturday, October 19, 2019

A estética do filme Coringa

Coringa é um filme com cenas belíssimas, mas não porque se traduzem em beleza natural. Em vez disso trabalha com uma estética da feiura, do contraste e da dor.

Na expressão da feiura, o caos, a desordem, o desconjuntamento dançam no olho do furacão de uma música crescente e grandiosa, com imagens de câmera rodando e subindo para a onisciência, para mostrar que é possível garimpar beleza mesmo ali, no lixo, nos becos da existência.

Na representação de contrastes alguns quadros mostram a urbanização desenfreada, o entardecer poluído, que são quase fotografias em preto e branco, para machucar o olhar de quem assiste com a aridez de cidades descontroladas, estéreis e sem fim.

E a dor aparece em cada lance de escada que não termina, nos poucos segundos em que isso foi representado, repetidamente, por várias vezes, nos passos moucos, quase mancos, de alguém que está sendo cotidianamente massacrado pelo mundo desde o dia em que nasceu. Porém com alguns respiros insanos de fumaça de tabaco e psicotrópicos a lhe entupir as veias, para poder dançar ridícula e inebriadamente, em sonhos de amor, no final de mais um dia em que o universo desabou sobre sua cabeça.

Coringa versus Bolsonaro

Jogos ou filmes podem incentivar ou legitimar a violência? Há muitas pesquisas a respeito, e até hoje não se produziram evidências sólidas que sustentem esta associação. Então, via de regra, por enquanto, jogos ou filmes não funcionam como estimulantes para a violência.

Porque, convenhamos, matar pessoas, de modo precipitado, é algo que exige planejamento e treinamento. Exige um cultivo, uma cultura do que irá se realizar. Não é algo trivial. E a melhor forma de produzir uma cultura assim, voltada para isso, é o militarismo.

Então um presidente militarista, que faz sinal de arminha pra tudo, que diz com orgulho “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”, que tem torturadores como ídolos, que diz que a ditadura matou pouco, que para melhorar o Brasil teríamos de matar umas 30 mil pessoas, é muito mais incentivador ou legitimador de violência e de uma cultura da morte do que o filme do Coringa, tá bom?

Coringa é um filme perigoso?

Quando começo a pensar na situação específica de alguns de meus pacientes, confesso que fico um pouco apreensivo de que eles assistam ao filme. E, por sorte, acho que muitos deles, se vierem a assistir, irão falar do que viram e de como estão se sentindo. E isso é muito importante para que possamos intervir de modo a deixar claro que as consequências para crimes graves, para quem padece de transtornos mentais, no Brasil, são também bastante graves e muito sofridas.

Porque, na prática, existe prisão perpétua no Brasil. Ela ocorre quando alguém que é pobre, e comprovadamente padece de transtornos mentais, comete um crime de grande gravidade. Basicamente irá permanecer, para o resto de sua vida, na ala psiquiátrica de algum presídio. E se não for pobre, ficará também em regime de reclusão, por um bom tempo, em alguma clínica psiquiátrica particular, com doping forçado. Ou seja, sofrerá, durante muito tempo (possivelmente para o resto da vida), um controle químico severo, terá uma vida de zumbi, e terá sua vida em sociedade completamente arruinada, por mais que haja toda uma estrutura técnica e social avançada no setor de reabilitação psicossocial. Porque os casos de pessoas com transtornos mentais, que cometem crimes graves, talvez sejam os mais delicados e severos.

Já atendi muitos pacientes que me comunicaram desejos genocidas, de sair matando pessoas a esmo, ou de matar a própria família e se matar. Quando atendo a casos assim, nos quais existe esse tipo de desejo ou ameaça, faço o que posso para mostrar a gravidade das consequências, e do quanto de sofrimento que produzirão, para si e para diversas pessoas.

Porque é fundamental informar. Não basta somente ouvir, demonstrar empatia e acabar, no final das contas, sem querer, gratificando intenções e planos para cometer atrocidades. O manejo técnico, nessas e em várias situações clínicas, se dá nos detalhes. É fundamental ouvir a maioria das coisas que os pacientes dizem, mas não tudo o que dizem ou pretendem dizer. É necessário saber certinho se estamos entrando em detalhes desnecessários e talvez nefastos, perigosos. Se estamos, sem querer, adentrando um terreno no qual o paciente se regozija em narrar para nós os detalhes de seus desejos e de como cometerá suas atrocidades. Temos de ser companheiros sem sermos cúmplices.

E fico também preocupado com aqueles que não estão mais em um espaço terapêutico, em um espaço de terapia pela fala, e com pessoas que estão na iminência de uma crise psicótica, e possam se sentir inspiradas a cometer algum ato de violência grave depois de assistirem a um filme como Coringa.

Mas as fontes para inspiração são muitas. Não podemos conceder essa onipotência a esse filme. As pessoas também se inspiram, e muito, quando veem alguma notícia de atentados em massa, de alguém que entrou em algum lugar armado e matou diversas pessoas a esmo, e se matou, ou de pessoas que mataram suas famílias e se mataram. E sei que algumas pessoas ficam particularmente inspiradas pela possibilidade de depois serem classificadas como incapazes, como doentes. E por isso, reitero, que sempre deixo claro a meus pacientes que doença não é álibi.

Mas outro problema crucial também é o acesso facilitado a armas de fogo. O desastre, de modo geral, somente se completa se houver acesso facilitado a armas de fogo, como ficou também muito bem ilustrado pelo filme. Dificilmente alguém consegue cometer um crime grave, e de grandes proporções, se não houver acesso a armas de fogo. E neste aspecto os norte-americanos estão ainda muito mais suscetíveis do que nós brasileiros, simplesmente porque lá é muito mais fácil ter o porte de armas de fogo.

Coringa e a gênese da loucura (sem spoilers)

Se você ainda não assistiu ao filme Coringa, uma sugestão para intensificar a experiência de imersão: vá sozinho(a), e saia sozinho(a) da sala de cinema

É um filme para se assistir sozinho, porque constantemente cutuca, mexe, mobiliza toda e qualquer parte nossa que pode estar se sentindo ou já se sentiu sozinha nessa vida.

E se ao sair do cinema sozinho(a), caminhando por onde você tiver de caminhar, você não se sentir, pelo menos durante alguns minutos, como alguém completamente estranho ao mundo e às pessoas que nele habitam, talvez seja bom repensar um pouco sobre sua capacidade de se colocar no lugar de pessoas que estão em uma situação de completo estranhamento e rejeição em sua relação com os outros.

Ou então talvez seja eu que esteja sendo muito moralista e exigente para com a singularidade da experiência que cada pessoa terá ao ser exposta a esta obra de arte.

Esse filme é uma obra de arte, uma obra prima. Tem o poder de fazer com que muitas pessoas se sensibilizem para o drama de ser diferente, e o quanto que uma sociedade socioculturalmente pobre (intolerante) pode transformar pessoas diferentes em pessoas com transtornos mentais.

Sei que o filme não trata especificamente disso, mas quero retomar dois parágrafos que escrevi aqui no Facebook, em 2012, inspirados na interação que tive com muitos de meus pacientes psicóticos:

"Se você é uma pessoa muito diferente, a qual nasceu e foi criada em um ambiente socioculturalmente rico (tolerante), o mundo fará de você um artista.

Contudo, se você é uma pessoa muito diferente, a qual nasceu e foi criada em um ambiente socioculturalmente pobre, o mundo fará de você um esquizofrênico."

Porque muito antes das pessoas adoecerem seriamente, elas muitas vezes são somente pessoas que estão se expressando de um modo um pouco diferente do usual. É comum, principalmente profissionais de saúde mental, apontarem para o problema da intolerância, para o problema de como a sociedade lida com quem tem transtornos mentais, e que é importante lutarmos para que essas pessoas sejam mais inseridas e menos discriminadas.

Sim, é muito importante todo esse movimento de maior inclusão das pessoas com transtornos mentais nos espaços públicos, na comunidade, porque é justamente esse movimento que vai facilitar todo o processo de recuperação. A luta antimanicomial é uma luta contra a mentalidade manicomial, de que essas pessoas devem ser isoladas, afastadas do convívio social. E isso concretamente se expressa na existência de hospitais psiquiátricos (manicômios) que tradicionalmente sempre se situaram distantes, fora da comunidade.

Porém algo que passou a chamar muito a minha atenção, conforme fui mergulhando mais no cotidiano de pacientes pré-psicóticos, é em como muito provavelmente a intolerância às diferenças e às singularidades é algo importante na produção de transtornos mentais tais como as psicoses.

Somos produto do meio

É muito comum a afirmação de que somos produto, o resultado de nossas escolhas. Contudo, se uma pessoa é produto das escolhas dela, fica a questão: de onde provem essas escolhas? Por que ela escolhe x e não y? Quais são os determinantes das escolhas de alguém?

Responder que estas escolhas provém de dentro, que provém da própria pessoa, não explica nada, não é uma resposta racional. É somente uma resposta circular. Não é muito diferente de responder que tudo existe porque Deus criou, e se esquecer de que a racionalidade sempre pergunta assim: se Deus criou tudo, então quem criou Deus?

O mais racional é formular hipóteses (e que podem ser inúmeras) sobre os motivos de alguém escolher x e não y. Não fazer isso, afirmando que a escolha brota da própria pessoa, de dentro dela, é se negar a trilhar caminhos para conhecer melhor quem essa pessoa é, e como, se for o caso, pode ser ajudada para poder futuramente fazer melhores escolhas.

Coringa como produto do meio

Uma das leituras possíveis para o filme Coringa diz respeito à noção de causalidade, de determinação do que somos. E uma coisa para mim é clara, e pode ser muito bem ilustrada por esse filme: somos sempre produto do meio, porque não há como ser produto de si mesmo. E por meio entenda-se inclusive as condições biológicas que atuaram para produzir o que somos. A concepção de self-made man é, acima de tudo, anticientífica.

Existem pessoas boas no mundo

Conheci jovens e adolescentes, principalmente em minha prática clínica, desiludidos com o caráter das pessoas, com o amor. E a maioria desses jovens é composta por celibatários involuntários (incels), geralmente homens que pensam, por exemplo, que "as mulheres não estão interessadas em homens honestos, de caráter, que sejam cidadãos de bem". Pensam que "mulher gosta é de bandido, de dinheiro".

E isso acaba sempre fazendo com que eu me lembre de quando entrei na USP, em 1991. Antes de entrar na USP eu tinha meu círculo de amizades e paqueras, e muitas vezes eu tinha o sentimento de que os caras com grana sempre estavam em vantagem.

Eu não chegava o ponto de pensar que mulher gosta de dinheiro ou que não havia qualquer espaço para mim no mundo. Eu não chegava a esse ponto, mas eu não sabia que era possível existir no mundo espaços e contextos onde claramente o caráter valesse mais do que o dinheiro.

E quando entrei na USP, para a minha surpresa, não era assim que funcionavam as coisas. Pelo menos ali, naquele contexto de centro acadêmico de Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto (a Filô), não era esse o padrão. Era outro, completamente diferente. Quando cheguei à USP, senti que havia chegado a um universo muito diferente. Meu círculo de convívio na USP era composto por pessoas que valorizavam, acima de tudo, capacidade de reflexão e caráter.

Os colegas que tinham mais respeito e moral entre nós eram aqueles que demonstravam ser mais desapegados de bens e dinheiro, os mais altruístas, os que tinham uma maior capacidade de reflexão e compreensão da realidade que os circundava e aqueles que demonstravam ter mais autenticidade e criatividade.

Naquele contexto ter um carro ou se vestir com roupas caras era algo que ficava completamente em segundo plano, era algo que era concebido literalmente como desprezível.

Então, de certo modo, ter entrado na USP foi para mim como ter entrado no paraíso, como ter chegado em algum lugar onde eu de fato poderia expandir ao máximo várias de minhas potencialidades como ser humano. Era o espaço privilegiado para que eu vivenciasse e treinasse ao máximo as minhas habilidades referentes aos traços que enumerei acima.

Era de fato um lugar extremamente propício para que eu me transformasse em uma pessoa melhor, em vários sentidos. Nos meios em que eu convivi havia constantemente uma preocupação com uma existência ética. E uma existência ética é algo completamente diferente de uma existência que somente segue as regras de uma moral dominante. Viver eticamente não é somente fazer o que parece ser bom. Viver eticamente é viver constantemente refletindo sobre o bem e o mal, sobre quais são os caminhos, nos mais variados contextos, que de fato vão produzir mais ou menos benefícios e malefícios.

E aí, há poucos dias, quando interagi com um jovem que se queixava do mundo, de que "as mulheres só gostam de bandido", onde "os jovens de hoje não valorizam o caráter", fiquei pensando em como o universo dessa pessoa estava restrito, em como ele não tem ideia de que existem sim nesse mundo muitas pessoas boas.

Fiquei pensando que esse jovem precisa ser acolhido, aceito e tolerado, com todas as intolerâncias que ele já apresenta, como sintomas reativos a um mundo do qual ele não está conseguindo obter amor. Ele, como muitos outros jovens celibatários involuntários, não conseguiu compreender que nem sempre as pessoas são tão ruins assim, que é sim possível um outro mundo, com muito mais amor do que esse mundo ridículo no qual eles estão isolados e presos.

Colegas médicos, atenção...

Há algumas coisas que me deixam bem irritado. Quero falar de quando pacientes chegam ao CAPS, já vindos de alguma Unidade Básica de Saúde.

Muitos, que estão com insônia pela primeira vez na vida, já chegam com prescrições de medicamentos tarja preta (benzodiazepínicos), para uso contínuo. Contudo o médico poderia antes ter tentado várias outras opções menos deletérias, que fazem todo sentido para primeira linha de tratamento para insônia. Somente para citar alguns exemplos, poderia ter tentado antes prescrever algum antialérgico, relaxante muscular ou algum antiemético.

Outra coisa que também me tira um pouco do sério é ver paciente, que nunca tomou medicação psicotrópica na vida, já chegar ao CAPS com prescrição off-label e para uso contínuo.

E para quem não entendeu o termo aí, em inglês, ele se refere a prescrições não aprovadas. Ou seja: o paciente chega ao CAPS, relatando que estava com problemas de constipação ou diarreia, por exemplo, com prescrição de antidepressivo e benzodiazepínico em uso contínuo. E, veja bem, benzodiazepínico se usado continuamente por mais de 20 dias já é suficiente para que a pessoa se transforme em um dependente químico dessa substância.

Certa vez, me lembro claramente, uma senhora chegou o CAPS, e já estava tomando um benzodiazepínico e um antidepressivo, em uso contínuo, há 6 meses, para tratar constipação. E o médico nem mesmo havia tentado prescrever psyllium (Metamucil). Essa senhora nem mesmo sabia o que era o Metamucil.

E reitero o que já escrevi em postagens anteriores: não existe medicação psiquiátrica que cure. Nenhuma das medicações psiquiátricas existentes trabalha segundo parâmetros etiológicos. Para praticamente todo o restante das especialidades médicas trabalhar sem perspectiva etiológica é algo temerário.

Porque não faz o menor sentido ficar indefinidamente prescrevendo medicações que somente atuam sobre os sintomas. É sempre necessário tentar compreender quais são os agentes causadores desses sintomas. Imagine, por exemplo, que alguém esteja gripado, e o médico lhe prescreva repetida e indefinidamente paracetamol.

Agora imagine que o uso não aprovado (off-label) é pior ainda. Porque ocorre a prescrição para sintomas para os quais não há qualquer tipo de evidência consolidada de que esses medicamentos sejam eficazes.