Wednesday, May 08, 2024

Nove dias para o sarau

João (nome fictício) aceitou por fim cantar no sarau do CAPS sem cachê. Mas tem outras exigências.

- Adriano, precisa ter mídia. Convoque a imprensa. Tem que ter Globo, tem que ter divulgação. Meu objetivo é a carreira internacional.

- Ok. Farei o que puder. Mas vamos ensaiar um pouco?

E assim ele entoa sua primeira canção, Suspicious Minds, de Elvis Presley:

“We're caught in a trap
I can't walk out
Because I love you too much, baby..."

- Mas não, para, para... Assim não dá. Fomos pegos numa armadilha (We're caught in a trap)? Não, isso não soa bem. É ruim. Não gosto disso. Vou trocar para I still love you baby...

- Tudo bem, João... 

Aí passamos para Tears in Heaven, de Eric Clapton.

“(...) I must be strong
And carry on
Cause I know I don't belong
Here in heaven..."

- Não, assim não dá!

- O que foi, João?

- Esse Eric Clapton é um bosta mesmo. Como é que ele me fala uma coisa dessas, de não pertencer ao paraíso? Quer ir pro inferno? Que sujeito sem noção... Vou trocar por “Cause I know I will belong here in heaven...”

E assim prossegue João, alterando todas as letras. Faltam 9 dias para o sarau. Até lá boa parte das canções serão modificadas.

Monday, May 06, 2024

Insônia

Pelo pesadelo da ferida aberta de uma noite mal dormida, sou jogado ao relento sonolento do eterno e massacrante dia seguinte dessa vida.

Os juristas e o conceito de livre-arbítrio

Existe livre-arbítrio? Do modo como talvez a maioria das pessoas compreende essa questão, realmente não existe isso. É um conceito que é geralmente adotado no senso comum com tons de autoajuda, ou de um elogio cego de uma liberdade absoluta, que simplesmente não se sustenta na realidade. Porque trata a vida humana como totalmente capaz de liberdade, como se cada ser humano fosse uma constante escolha de si mesmo. 

Pensar dessa maneira é acreditar que temos a capacidade de produzir escolhas totalmente acima das circunstâncias. E as circunstâncias não são simplesmente o que nos determinam. Nós somos o somatório ou a interação orgânica, multiplicativa e complexa, de nossas circunstâncias. Nossas circunstâncias definem o que somos. Nós somos isso. A crença de que se pode pairar acima das circunstâncias é no mínimo algo da ordem de uma ingenuidade narcisista. É ilusão, é narcose.

E eu também percebo uma preocupação muito grande, na área do Direito, em relação à necessidade de que exista o conceito de liberdade ou de livre-arbítrio, calcado inclusive na capacidade de se escolher constantemente o que somos. Juristas, de modo geral, são sequestrados pela necessidade da existência do livre-arbítrio, porque se não houver esse tipo de conceito como é que poderíamos atribuir responsabilidade ou mérito a quem quer que seja? 

Contudo não tem nada a ver uma coisa com a outra. Podemos muito bem abrir mão desse tipo de conceito metafísico e continuar compreendendo muito bem as devidas responsabilidades relacionadas ao que as pessoas fazem. Compreender que todos somos determinados pelas circunstâncias ou que cada um tem seus motivos ajuda a entender, mas não transforma delitos e crimes em algo razoável ou justo Porque entender explica, mas não justifica. Quando explicamos estamos encontrando as causas, os motivos, mas não estamos tornando algo justo ou razoável.

A ordem da justiça e das justificações é completamente diferente da ordem das explicações. Não se misturam. Alguém que tenha sido abusado e depois passa também a cometer abusos não transforma assim seus crimes em algo justificável. Crimes não se justificam. Podem até ter alguns atenuantes, mas continuam sendo crimes, independentemente dos motivos de cada um.

Como hoje mesmo pude ler, e recomendo, em um texto de Carlos Orsi, sobre um dos principais livros de Daniel Dennett, ele cita uma frase muito emblemática a respeito dessa discussão, atribuída a John Austin: 

“Entendimento pode apenas acrescentar desprezo ao ódio”.

Friday, May 03, 2024

Rotina, no CAPS

Chego logo cedo e encontro com João, paciente que frequenta o CAPS há uns 7 anos. Ele canta bem. É afinado. Está vindo ao CAPS praticamente todos os dias nos últimos 10 ou 12 meses. É corredor de longa distância. Gosta de correr. Geralmente vem correndo de sua casa, que se situa a uns 5 km do CAPS ou mais. Não tem mochila. Vem correndo com um saco plástico numa mão, com seus pertences, e uma bíblia na outra.

- João, teremos sarau em 16/05. Você não quer cantar, não?

- De graça não dá, Adriano. Força as cordas vocais. Você sabe como é…

Horas depois cruzo com Dona Júlia, uma paciente muito divertida, com mais de 65 anos de idade, também assídua ao CAPS há uns 10 anos. Ela caminha com dificuldade e quase nunca perde seu bom humor e ironia refinada.

Sei os nomes e as datas de nascimentos de dezenas de pacientes. De modo geral qualquer pessoa, seja colega ou paciente, fica impressionada com isso. E saber o nome e a data pode agilizar bastante uma série de processos, porque não preciso ir até o paciente e lhe perguntar. Basta, a qualquer momento, lançar esses dois dados no sistema que instantaneamente tenho as informações de que preciso. 

- Júlia, agora consegui gravar sua data de nascimento: é 27/05/1958!

- Até que enfim, seu burro! Haja paciência! Não memoriza nunca! - com ironia precisa, certeira e dirigida a alguém que compreende o gracejo.

E assim juntos soltamos uma deliciosa gargalhada, geralmente acompanhada pelos demais presentes.

Wednesday, April 03, 2024

Do amor forjado na dor

Para onde foram nossos recantos mais íntimos quando a eternidade se engasgava com nosso amor?

Percorri as vias e as vilas de nossa paz e sofrimento e lá pude contemplar o abismo que a todos espreita e espera.

Eis nosso projeto de dor e resistência, a batalha de insistir em continuar a viver. É carregar a bandeira esfarrapada da vida para fazer brilhar os olhos de quem ainda engatinha por entre seus rincões mais belos e traiçoeiros.

Me servi da ternura de seu olhar e de suas mãos cansadas, para rastejar pelos campos dos dias que nos restam, das chuvas que se prometem no final do deserto e da dor.