Saturday, April 08, 2006

Loucos 5 (Quando "fui" gari)

Sempre que posso, me dedico a observar o comportamento de pessoas que vivem com muito pouco. Tentar compreender como alguém consegue viver (ou sobreviver) com apenas um salário mínimo (o que é o caso de grande parte dos brasileiros) sempre foi para mim um verdadeiro enigma. Nunca dependi de salário mínimo para viver e não sou capaz de entender que isso seja possível. Então fico sempre muito curioso. Observo. Se puder, converso com quem vive assim. Sempre pergunto onde mora, quantas conduções pega, quanto tempo leva no trânsito, a que horas acorda, qual é a maior diversão, do que gosta mais de fazer em seu tempo livre. Enfim, gosto de entabular uma conversa. 
Sinto que tenho muito a aprender com quem dá um jeitinho de ser feliz, apesar de todas as adversidades .
Era uma manhã radiante e repleta de frescor. Eu caminhava todos dias até o supermercado, bem perto de minha casa. Passei então a reparar na equipe de garis que faz o serviço na região da minha quadra. Creio que é uma pequena equipe de três sujeitos, dos quais lembro-me bem de dois: um com os olhos bem pequenos, meio personagem de desenho animado; e outro de óculos e um pequeno bigode, com fisionomia mais agressiva. Não entrarei em detalhes acerca de tudo o que já pude observar. É suficiente dizer o que senti nesta linda manhã em que meu espírito navegava um olhar de contemplação e paz por tudo o que via. Olhei para os garis e reparei em sua indumentária. Roupa para trabalho pesado, toda alaranjada, de mangas compridas, com algumas tiras verdes refletoras, e um boné também alaranjado. Uma roupa que esconde a identidade do sujeito, dificultando o contato com a pessoa, pois há uma pesada roupa reluzente de anteparo. E deve, claro, ser reluzente, chamativa, com mangas compridas e boné. Deve protegê-lo do sol e torná-lo bem visível aos carros, pois eles vivem nas ruas. Então são visíveis e invisíveis. O trânsito os enxerga e o coração não.
Mas como era uma manhã linda, eu estava a tudo contemplar com os olhos do coração e todas as virtudes ou miopias de que ele padece. Senti vontade de trocar um pouco de papel com eles. Trabalhar um tempo como gari. Talvez uma semana. Porém isso não estava ao meu alcance e tive outras idéias e questões, tais como: será que existe o dia do gari? Sim, fui pesquisar: 16 de maio. E seu eu arranjasse uma roupa igual? Queria vesti-la, saber se era confortável ou não. Dei um jeito de descobrir o nome da empresa que fornecia esses uniformes para o governo e providenciei um para mim.
Fora um ano muito turbulento. Eu andava muito inconformado com uma série de coisas e doido para dar alguns gritos de liberdade. Às vezes parecia que ia enlouquecer. Sempre que podia, tomava as dores de gente simples como os garis. E talvez eu nem tivesse muita razão na maior parte das pendengas em que me metia. Estava sendo arrastado para o olho do furacão de um processo irreversível de enlouquecimento e ainda era capaz de ver virtude nisso tudo. Sim, enlouquecia por boas causas. E isto é pior ainda, pois a loucura passa a ter sentido, a ser interessante.
O mundo seria melhor depois do sacrifício completo da minha sociabilidade. Minha loucura seria uma semente para muitas outras mudanças benéficas para a humanidade. Estava disposto a sacrificar meu ser, meu nome, minha carreira e minha imagem em prol do despertar de um novo tempo, de uma revolução de mentalidades e costumes sem precedentes. Hoje, tendo relativamente recuperado minha sanidade, posso refletir com mais sensatez e crítica acerca daquele ano absurdo e fatídico.
Eu estava atuando como professor universitário no curso de Psicologia. Terminara meu doutorado havia poucos meses, juntamente com o término de muitas outras coisas e sonhos que haviam simplesmente se esvaído pela ralo da existência. Tinha um diploma de doutor nas mãos e o coração despedaçado. Conquistara algumas glórias raras e sagradas da vida intelectual e perdera o coração no meio da estrada. E todos sabiam: “lá vai um doutor que está completamente perdido nesta vida”.
Estava ensandecido e com o coração afogado em mágoas sulfurosas. Delírios e alucinações eram então o destino mais coerente com minha condição. Frente a meus desafetos, meus algozes, os quais haviam pisado na minha cara enquanto afundava, era necessário não vê-los, mesmo que estivessem concretamente na minha frente. Não podia ver algumas coisas. Era incapaz de me olhar no espelho de manhã. E incapaz também me tornei de perceber meus desafetos como seres humanos.
Um dia saí de casa e fui almoçar em um restaurante próximo. Quem estava lá? Meus dois maiores algozes. Os dois sujeitos que minha loucura julgava serem o centro de minha tragédia, da morte de todo o sentido possível em minha existência. Pude vê-los e saber que eram eles. Um deles tinha barba e eu era capaz de olhá-lo, reconhecê-lo e, por educação, devolver seus cumprimentos, apertando sua mão e olhando para seus olhos. Mas não havia olhos, não havia rosto. Era incapaz de ver seu rosto. Seu rosto era uma mancha lisa como um pau, em cor salmão, sem olhos, sem boca e sem nariz, somente com a penugem de uma barba artificial. Ele havia se transformado num boneco. Eu cumprimentava um boneco de madeira, mal feito, mal acabado e com uma penugem ridícula no lugar do rosto. Os dois eram bonecos feios e falantes. E eu só os ouvia, de fato, se quisesse. Bastava apertar um botãozinho dentro da minha cabeça (on/off) e suas vozes desapareciam no breu de minha sombria magia interior.
Depois desse dia, percebi que a coisa estava ficando bem séria. Eu já não era mais somente aquele conhecido sujeito excêntrico. As pessoas se afastavam, estavam ficando com medo de meu processo crescente e monstruoso de enlouquecimento. Eu estava enlouquecendo e tinha total consciência disso. Porém não era mais capaz de controlar o que já vinha me engolindo havia um certo tempo. Era um estado de loucura necessária, inevitável, pelo qual meu ser deveria passar: “preciso enlouquecer, senão eu morro”, pensava. E o tempo todo era isso: morte, morte. E para não morrer de vez, para que o corpo não se exaurisse, tive de sacrificar minha alma.
Assim, todos os que não me interessavam, se transformaram em pedaços de pau. E os que se interessavam, deixaram de fazê-lo: sumiram todos. Eu estava imerso na mais completa solidão e era também incapaz de qualquer comunicação compreensível. Minhas aulas se transformaram em verdadeiros espetáculos de esquisitice. Alguns alunos também enlouqueciam de fascinação, outros de horror. Os primeiros freqüentavam as aulas como se estivessem indo ao circo. Os segundos faziam um movimento político para que eu fosse afastado por insanidade. E a gota d’água foi exatamente no dia 16 maio, dia do gari. Fui à aula vestido de gari. Disse somente que era uma homenagem, pois era o dia desses nobres trabalhadores.
Na sala dos professores o espanto foi geral. Dias depois eu recebia uma advertência do diretor. Interpretei tudo isso como uma grande limitação do que seja a vida. E, muito revoltado, resolvi radicalizar o protesto. Decidi que a roupa de gari agora seria meu uniforme de trabalho. Fui mais alguns dias com ela, o que só fez me extremar ainda mais minha ação revolucionária. Resolvi que melhor ainda seria não mais tirar a roupa de gari. Seria a roupa da minha existência. Comprei várias outras e as usava todos os dias, a todo momento. Inclusive para dormir. Só a retirava para tomar banho ou quando já precisava de lavagem. Preferia-as, na medida do possível, sempre limpinhas e cheirosas. Meu guarda-roupas era lindo, todo alaranjado. Dizem que a roupa é uma segunda pele. Minha segunda pele era de gari. E em alguns aspectos eu mantinha minha total sensatez. Julgava inclusive que eu estava, na verdade, padecendo de um excesso de lucidez. Como as pessoas eram cegas, limitadas.
Assim sendo, fui submetido a diversos tipos de inquérito. Todos se julgavam no direito de me importunar por uma decisão existencial que era somente minha e de mais ninguém:
- Professor, afinal, qual é a utilidade pedagógica de vir lecionar vestido de gari?
- Veja bem, meu querido aluno, estamos aqui na universidade, com este projeto pioneiro da roupa do gari, promovendo a participação de todos vocês na formação, na criação do repertório simbólico de uma zona atômica temporária para a revolução dos costumes e do ethos dominante em uma sociedade individualista e injusta como a nossa...
Assim incursionava nas mais diversas teorias com as quais convivi em anos e anos em que fui rato de biblioteca, quando devorava livros como nenhum mortal. E hoje, mais evoluído e maduro intelectualmente, e mentalmente mais saudável, mais lúcido, sou capaz de perceber também o tanto de baboseiras que dizia. Contudo, àquela época, naquele contexto, tinha muito sentido, e eu ainda era capaz de angariar muitos discípulos. Não era somente um processo de loucura individual, mas também coletivo. Eu tinha pretensões messiânicas de arrastar o mundo todo para o olho do furacão de minha própria loucura. E tudo estava coerentemente acontecendo conforme eu planejara minuciosamente. Se era uma revolução, deveria mesmo ser uma reação em cadeia. O conceito de “zona atômica temporária” contagiava a todos. Em inglês usava-se a sigla TAZ, “temporary atomic zone”. Era uma reação atômica. Temporária em uma primeira etapa da revolução. E, depois, definitiva: o mundo todo transmutado em seus novos e frutíferos valores universais.
Minha aulas haviam se transformado em espetáculos bizarros. Tudo o que era possível eu encenava ou cantava. E sempre tinha como parâmetro surpreender totalmente meus ouvintes. Por aqueles dias, eu deveria dar uma palestra em uma outra universidade, a qual já estava programada desde muito antes do surto da roupa do gari. Não houvera tempo suficiente para que a notícia de minha loucura chegasse até esta outra universidade. O tema era de abrangente interesse, eu era um profissional muito bem conceituado.
O auditório estava lotado. Pensei: hoje é o dia. Entrei, peguei o microfone e, quando fui convocado a falar, fiquei por uns bons instantes em silêncio total, com a cabeça retorcida para o lado e o rosto acompanhando, em expressão torta, grave e bizarra. Não dizia nada e somente fitava o público desta forma retorcida e estereotipada. Vez ou outra eu soltava uns grunhidos, também retorcidos. Eu era uma figura inerte, retorcida, que emitia alguns grunhidos altamente ridículos. Deixei que o espírito do ridículo inundasse minha alma e me entreguei a ele por alguns minutos. Não teve alternativa, o público mergulhou na perplexidade. Como alguém podia se expor tanto ao que é ridículo e impróprio, e se destruir tanto, em tão poucos minutos?
Saí da posição bizarra e comecei a explicar ao auditório atônito a utilidade daquilo que acabara de fazer. Aproveitei então para mudar o título da palestra. Antes: “A interpretação em clínica”. Para: “TAZ e interpretação”. Este novo conceito e método que eu formulara estava como um vírus a tomar conta de todas as teorias e técnicas com as quais eu trabalhava. Não havia mais como escapar.
Em poucos dias, o Conselho Universitário tinha minha pessoa como uma pauta fundamental. Transformei-me em um sério problema institucional. Reuniam-se para decidir se eu seria afastado ou não. Mas o processo foi bem mais rápido. Quando dei por mim estava sendo abordado em sala de aula pelo Corpo de Bombeiros. É isso mesmo, na capital do Brasil, o resgate, a internação de loucos, se inicia com o Corpo de Bombeiros. Não resisti fisicamente, e também não tentei agredir ninguém. O movimento Gari-Taz era pacífico.
Da sala de aula fomos direto para um manicômio. Era um tempo em que eu estava totalmente desamparado. Conseguiram neutralizar o movimento bem em seu inicio. Porém, àquele tempo, o TAZ tomou conta da rede mundial de computadores. As referências eram várias. Bastava uma busca simples e logo tínhamos diante de nossos olhos uma miríade de referências, artigos, teorias e movimentos que já proliferavam em todo o mundo. Contudo, hoje, o termo “atômica” foi abolido e trocado por “autônoma”. É denominado hoje como “Temporary Autonomous Zone”. A troca do nome não configura somente uma terminologia diferente, mas o próprio enfraquecimento do movimento. A prometida reação em cadeia nunca ocorrerá. FBI e CIA foram muito eficientes em neutralizar membros importantes e estratégicos e eu certamente fui um dentre vários deles.
Mas isto já é passado. Não possuo mais nenhuma ligação com tais movimentos. Simplesmente pude tratar da minha saúde e retornar à pacata e conformada vida que tinha antes disso tudo. O tempo que passei no manicômio, assim como a loucura que vivi depois deste, pois este somente piorou as coisas, seriam temas para outras histórias.
Depois de vários meses de internação, alta, envolvimento com drogas e prostituição, só pude reencontrar minha lucidez com a brilhante idéia que teve meu orientador de doutorado. Ele procurou e selecionou um gari que pudesse servir como meu terapeuta. Teve a genial idéia de que somente um gari psicoterapeuta seria a possibilidade concreta para minha retomada de vínculo com o mundo real. Se havia sido por meio deste mito pessoal do gari que eu incursionara na loucura, seria por meio deste mesmo mito que eu sairia. Sairia pela mesma porta em que entrei. Sempre sob sua mais rigorosa instrução e supervisão, este gari enviado de Deus, Jorge Luis dos Santos (nunca me esquecerei seu nome e sua aura divina), me procurou. Sendo gari e provando que o era, logo conquistou minha aliança e simpatia. E no período de apenas alguns meses eu já podia andar com minhas próprias pernas. Minha lucidez voltava a reluzir.
Como parte da conclusão do tratamento vivi durante um mês como gari. Isto funcionou como um tônico para minha alma. Hoje trabalho para continuar tendo uma vida simples, discreta, estável e feliz. Eu e minha mulher estamos planejando ter filhos. E o nome do primogênito será Jorge Luis.

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