Monday, March 28, 2005

DO ESPÍRITO

<>(Trecho sobre o espírito, de minha tese de doutorado)

Pois somente o espírito é que pode pairar por sobre as prisões da realidade, sejam estas prisões configuradas segundo critérios concretos ou normativos. O espírito não é definido de fora, pois somente ele pode definir-se a si mesmo. Assim, não está preso à lógica, à necessidade de definição. O espírito paira por sobre as contradições, é puro movimento, puro recriar-se. Mesmo que tudo falhe, que tudo se destrua, está lá o espírito, a única possibilidade de existência perante a destruição de todas as alternativas, de todos os meios. O espírito pode às vezes traduzir-se em silêncio, em sem-sentido (non-sense), em ausência, lugar do indecidido, o espaço que semeia a criação. Sem espírito, não há criação. Contudo, o espírito é uma impossibilidade. Frente a qualquer anúncio, mesmo que sutil, desta impossibilidade, percebemos o espírito, sua presença grandiosa que nos espanta, pois que nos coloca de frente para uma auto-abolição alegre, um desprendimento de si mesmo, imprevisto, uma retirada do campo comum em que trocamos nossos afetos, como uma contra-comunicação freqüentemente risível a zombar de uma determinação implacável que define o nosso destino, como a morte. Não é portanto gratuita a relação histórica entre o espírito e tudo o que diz respeito ao riso e as arquiteturas de sua produção. Ser espirituoso é poder, em alguma medida, libertar-se, sempre de modo obtuso, mas de forma absurdamente justificável, daí o riso. Quando votado ao riso, a justificativa pelo absurdo é a saída do espírito.

<>Quando transitamos com tranqüilidade pelos meandros impróprios de uma expressão que atreve-se a contestar o óbvio, e insistir em enunciar o absurdo e o ridículo na dissimulação consciente de que estamos imersos no absurdo; mas que este é nosso mote de sobrevivência em uma realidade absurda, e que estar preso seriamente na mesma não merece mais do que nosso desprezo, mesmo que este possa brilhar por um único instante no beco sem saída de tal determinação: aí podemos abrir-nos para o riso: ínfimo na sua cronologia, mas eterno na memória que ensina, aos que virão, a abrir algumas brechas para o prazer, mesmo que sem corpo, sem o crivo do possível, mesmo que em espírito. O espírito possui esta virtude, a de corporificar o improvável. Como já disse, ele é sopro, ele inspira, vivifica.

Sunday, March 27, 2005

NO QUINTAL DO PENSAMENTO

Tenho estrelas para contar, pois perdi a conta da vida em céu nublado. Já colecionei muita escuridão: viciado em bater de frente com o errado. Imperador de cagadas. Era o rei da palavra em forma de choro. E o turbilhão de palavras não explodia além da manhã. Comi muita terra para poder voar. Respirei muito vazio e abismo para conquistar a terra. De dentro do meu buraco escuro, o estado de escrever era algum vaga-lume distante. De dentro do meu buraco de escrever eu poria um sol por poesia. Às vezes, no quintal do pensamento, eu imaginava, ou melhor, eu brincava de poesia: “poedizer o mundo em oitenta versos”, Camões de um mar interior, subterrâneo ou perdido bem no meio de um Pacífico turbulento de guerra, que fracasso em trancar no peito. “Poedizer o muito, como me tenta o verso...”. Então, vaguei para os meus becos sujos e vi a morte enroscada num canto, me vomitando obscenidades. É, nunca entendi a morte. É sempre preciso deformá-la para poder entendê-la. Se eu não deformo, não me formo. Se eu não destruo eu não vejo. Maestro nessa sinfonia de equívocos, despenco do que era previsto. Meu nome é acidente, moro dentro do horror, sou foragido da razão, estou onde vocês não me procuram.