Friday, February 18, 2005

GALINHAS 2

Galinhas são pássaros sem asas. Galinhas são seres avoados. Quem afinal já pensou uma galinha? Neste exato momento existe um mundo todo dominado por elas. Estar ciscando é como meditar e aproveitar o dia. As galinhas têm o tempo todo uma busca frenética de alguma coisa, no chão, é claro. Elas não voam e simplesmente desprezam o céu. Mas porque não voam? Que castigo foi este? Por que tal mutilação ocorreu na natureza? Uma especulação em evolução diria que não voam porque foi assim que nós humanos as fizemos. Nós mesmos que fomos selecionando sua forma. O mais engraçado é que esta seleção tira da galinha sua forma de bicho para dar-lhe a melhor forma possível de um alimento, acessível, tal como uma fruta a nos esperar no pé de uma árvore. Isto me deixa uma brecha de dó, acreditando que as galinhas são naturalmente infelizes, portadoras de uma infelicidade de quem não se sabe infeliz. Ou talvez o próprio ritmo lento de suas vidas permite que eu assim projete. Na verdade não dá para pensar nem que são felizes ou infelizes, puro devaneio besta de minha parte, convenhamos. Mas é divertido pensar no que são ou seriam, na relação que temos com elas.

Pouco vi alguém tentando decifrar um animal como uma galinha. Lembro, contudo, de um conto de Clarice Lispector. Ela narra o drama da fuga de uma galinha que estava prestes a ir para o forno. Ela vai parar em cima dos telhados das casas, como se soubesse da morte iminente. E o que mais me chamou atenção na narrativa de Clarice foi a sua bela suscinta descrição dos dois estados básicos de espírito de uma galinha: “apatia e sobressalto”. Magnífico, não preciso dizer mais nada. Ferreira Gullar também tem uma poesia sobre o galo. Muito bonita. Ele também tentou entender um pouco mais acerca do que é um galo. Claro, é totalmente imponderável tentar decifrar o que sente ou deixa de sentir um galo ou um galinha. Mas é por isto mesmo que é fascinante: o grande abismo que há entre nossas espécies.

Ferreira Gullar descreve o galo com uma aparência medieval, a crista, os esporões. E o que intriga Ferreira é o eterno preparo do galo para a luta, a guerra. Como se o tempo todo, em guarda, avistasse inimigos em uma defesa excessiva e intransigente de seu território. Marcou-me muito a expressão, ao final de uma enumeração de partes do corpo do galo, de seu “olho sem amor”. E também: “grito, fruto obscuro e extremo dessa árvore: galo. Mas que fora dele é mero complemento de auroras...”. Tocante, desdobrou um galo em partes que ainda não conhecíamos.

Então, voltemos para as nossas galinhas. Dotadas de nenhuma autonomia, as galinhas só vivem porque os seres humanos assim as querem, vivas e gordas. Se o homem não existisse, existiriam galinhas e cachorros? Este é um lado triste, galinhas e cachorros como meros apêndices da existência humana, acessórios vivos, espécies portáteis, propriedade humana. As galinhas são mais humanas do que imaginamos: são bípedes e frágeis. Ao contrário dos cachorros, com as galinhas os homens possuem uma relação de extrema indiferença e desprezo. As galinhas são seres completamente des-idealizados, não romantizados e, para a maioria, não romantizáveis. As galinhas se humanizam somente enquanto objeto de consumo, se é que assim se humanizam. As galinhas são bichos arrancados da natureza e criados como máquinas vivas que crescem e engordam para virar simplesmente carne e nada mais que alimento, como se esse alimento não fosse um ser vivo.

As galinhas são bichos zumbis, escravos de uma miséria fundamental. As galinhas são muito miseráveis. A natureza não as deseja e o homem as mantêm para não morrer de fome. As galinhas são pássaros pela metade, assim como os pingüins, que sabem nadar e têm sua própria casa. Mas nem galinhas , nem pingüins sabem disso. As galinhas perderam o rumo da evolução, assim como os homens, para ser esse nosso companheiro de exílio que violentamos sem piedade. Isto fez parecer que galinhas são seres naturalmente violáveis e violentáveis, absolutamente desprovidos de qualquer direito, bloqueados para o nosso amor. Elas somente têm acesso à nossa compaixão e é sobre o que me debruço agora. Pela história da criação de animais domésticos, as galinhas e os gatos são grandes vítimas de sadismo. Há quem odeie a histeria de uma galinha ou se deleite em sentir a sua reação desesperada a qualquer intento violento.. (a continuar)

Thursday, February 17, 2005

GALINHAS

<> As galinhas caminham em fila indiana, vendo-me, sem me olhar. Na sua via-crucis de ciscar o dia todo e ter o sol morrendo e nascendo em suas veias. Caminham para o nada, fazem a vigilância de seu coração que bate, do pelotão indistinto de filhotes que cega e histericamente as perseguem. Seres rumando pro nada, fugindo do momento fatal à espreita. Sempre postas a correr de outros bichos. O que pensa uma galinha? O que pensa uma galinha? O que sente uma galinha? O que é uma galinha? Deselegante pássaro mutilado que não voa? Irritante comida histérica a qual toleramos seu crescimento de ciscar e andanças desajeitadas, cacarejadas e sem rumo? Ser infeliz, acessório humano exilado da seleção natural, prometido ao sacrifício frente aos nossos caprichos de fé ou paladar? As criamos e as destruímos, ou melhor, as devoramos, com a indiferença com que se corta uma grama ou se derruba um muro velho. Afinal, o que são as galinhas?

Saturday, February 05, 2005

SOMOS INQUILINOS DO ALÉM


Foi ainda criança quando li uma citação de Machado de Assis, mais ou menos assim: “Pronto, está morto. Agora podemos elogiá-lo”. De fato, basta morrer para uma pessoa se transformar em alguém melhor. A morte é um momento de aperfeiçoamento pessoal do morto. Defeitos são varridos para debaixo do tapete da memória e do morto passa somente a brotar nobreza.
Certa vez, um amigo, psicoterapeuta, disse que em determinada sessão baixou lá um espírito. Relatou ter sido um momento de difícil manejo e que teve de conversar muito com esse morto mal resolvido. É, mal resolvido, assim também podemos denominar os fantasmas, as almas penadas: mortos que precisam urgentemente de terapia. Pois são mortos que não se enxergam como mortos, como são (ou como não são?). É o sujeito que morreu e não sabe. O pior deve ser o dia em que cai na real. Imagine: “Nossa, eu morri. Como não pude perceber, esse tempo todo. Tantos sinais, tanta gente tentando me avisar...”, deve sentir-se atavicamente traído pelo destino, pelo além, uma traição da própria eternidade. Aliás, a morte é, por definição, uma traição da vida. Com a morte, a vida é passada pra trás.
E fantasma é igual chifrudo, é sempre o último a saber de sua própria condição. Nossa, deve ser um baque emocional. Deve ser de matar, hein.
No final de sua estória meu amigo perguntou: “Escuta, morto paga sessão? Tem como eu cobrar dele? Sim, pois a sessão não foi do vivo. Ele ficou o tempo todo tomado pelo morto.”
Respondi assim: “Nós é que vivemos pagando para os mortos. Ninguém questiona a autoridade de um morto. Eles mandam. Nós temos muito temor aos mortos; respeito. Ninguém brinca com gente morta. Nós é que vivemos pagando coisas para eles. Aqui se faz e aqui se paga? É, mas muita gente dá o calote. Aliás, acho inclusive que os mortos cobram aluguel da gente. Não estamos aqui nessa vida de favor? Esse corpo não é um favor? Um empréstimo, como dizem muitas religiões? Somos inquilinos do além.”
“Nossa, bonita expressão: ‘inquilinos do além’; parece até nome de banda”, devolveu ele. E assim surgiu o nome deste blog, através de uma divertida reflexão sobre esses nossos companheiros eternos, os mortos.